Meus queridos netos:
Para não ser tida como facciosa, resolvi começar pela transcrição das próprias palavras de Andersen: “Que transição ao entrar em Portugal vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via, à minha volta, casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra ou do restante mundo civilizado”. Andersen passou por Elvas, por Abrantes mas a sua verdadeira surpresa foi… Imaginem! a vila do Entroncamento! “Na estação encontrámos um hotel verdadeiramente luxuoso e moderno. Pelo menos, assim me pareceu, pois na viagem desde Madrid havia perdido o hábito de todas as comodidades. O Rei de Portugal, depois do seu regresso de Espanha, aí havia pernoitado. Tinha uma grande e bonita sala de jantar e servia boa comida e bebidas frescas. Até chá e vinho do Porto se podia tomar. Estávamos, pois, no meio da civilização”.
Por volta das quatro da madrugada, foi a chegada a Lisboa e o escritor, a conselho do companheiro de viagem, foi passar o resta da noite ao Hotel Durand, perto da Rua das Flores. Como era domingo, resolveu procurar uma carruagem que o levasse à Quinta do Pinheiro, residência dos seus amigos O’Neill, a meia milha de Lisboa. E vejamos com que diferentes olhos vai observando a paisagem e as gentes portuguesas: “…Seguimos por praças e ruelas com casas de aspecto pobre, para fora de portas, entre muros em ruínas, pela estrada de Sintra. O grande aqueduto sobre o vale de Alcântara e os muitos pomares frondosos prestavam beleza aos arredores. Camponeses e camponesas montados em burros, carros chiando sob o peso das cargas, mendigos pedindo em altos gritos à borda da estrada davam-lhe animação”.
A Quinta do Pinheiro, onde foi efusivamente recebido pelo seu amigo Jorge e pela mãe deste, a Senhora O’Neill, que em vão tinham esperado pela sua chegada no paquete de Bordéus, é assim descrita por Andersen: “É uma casa velha, um pouco arruinada, de dois andares, paredes cor-de-rosa, portas verdes e janelas como as da maior parte das casas antigas de Lisboa. Uma fila de estatuetas destaca-se ao longo das cornijas do telhado. No interior, as divisões são numerosas, muitas das quais estão completamente vazias ou apenas têm uma cama armada, um velho quadro ou um simples móvel. A vista estende-se por todo o redor, sobre verdes montes e vales”. E acrescenta: “As janelas do meu quarto dão “… para uma parte do vale de Alcântara, sobre o qual, de construção arrojada e grandiosa, com arcos de altura vertiginosa, se estende o grande aqueduto: os “Arcos da Águas Livres”. De tal modo este o impressionou que a descrição continua e dele fez um desenho ainda hoje existente na Casa-Museu, em Odense, sua terra natal. A casa do Pinheiro estava rodeada por um jardim murado, todo florido quando Andersen chegou e que lhe inspirou alguns poemas. Diz ele: “Na realidade, tão bem me sentia aqui que pouco ansiava por ver a grande cidade próxima”. Perto, ficava o palácio e jardins do Conde de Farrobo, com o seu teatro, bem como o magnífico Palácio do Marquês de Fronteira, que descreve entusiasticamente. Em ambos foi recebido com muita deferência e cordialidade.
Lisboa deslumbra-o, contrariando todas as ideias que tinha preconcebido através de leituras e relatos: “ As ruas são agora largas e limpas; as casas confortáveis, com as paredes cobertas por azulejos brilhantes de desenhos azuis sobre branco; as portas e janelas de sacada são pintadas a verde ou a vermelho, cores que se vêem por toda a parte, mesmo nos barris dos aguadeiros. O passeio público, um jardim longo e estreito no meio da cidade é à noite iluminado a gás e aí se ouvem concertos. As árvores em flor desprendem um perfume bastante forte; é como se estivéssemos numa loja de especiarias ou numa confeitaria que preparasse e servisse gelados de baunilha”. Refere os edifícios e sítios principais: o Teatro D. Maria II, a Rua do Ouro toda tomada pelos ourives e seus “esplendores”, a Praça do Comércio “que se estende até à margem pavimentada do Tejo”, a praça Luís de Camões, preparada para receber a nova estátua do poeta (cuja obra ele conhece e exalta) e até o Hotel Bragança, de tão grande renome na época. Mas não deixa de referir alguns pormenores que, para nós, são no mínimo bastante estranhos e pitorescos: “Nas ruas principais há vida e movimento. Passam, ligeiros, cabriolés e arrastam-se, pesados, os carros de bois dos camponeses de aspecto antediluviano. Pode-se ver um leiteiro com duas ou três vacas que ordenha na rua, seguido muitas vezes dum grande vitelo com açamo de coiro, a custo extraindo a sua ração fixada de leite”.
. A sua vida em Lisboa deve ter sido bem preenchida, pois privou com António Feliciano de Castilho, cuja obra admirava e com quem trocou correspondência e até foi recebido, com toda a pompa, pelo rei D. Fernando. O rei fez questão em ser ele próprio a mostrar-lhe os jardins reais, que o deixam fascinado. E é a propósito de D. Fernando que Andersen recorda os últimos tempos da História de Portugal, desde a ida de D. João Vi para o Brasil até às lutas liberais.
Com o aproximar do calor do Verão, mudam-se para a casa de campo que Jorge O’ Neill tem em Setúbal, o que os obriga a uma demorada e cansativa viagem. Mas, como nós também já estamos a ficar cansados desta deambulação, terei de recorrer a mais cartas para resumir estas impressões tão saborosas do escritor que nos ajudou a sonhar e a crescer com as suas deliciosas histórias.
Beijinhos, pois, e até breve.
O Aqueduto das Águas Livres desenhado por Andersen:
Fonte: Livro "Uma Visita em Portugal em 1866" de H.C.Andersen, traduzido por Silva Duarte