Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Terça-feira, 06.05.08

 

 

Meus Queridos Netos:

           Quando regressámos a Portalegre, foi tempo de matarmos as muitas saudades dos nossos filhos e dos Bisavós. Distribuíram-se as prendas trazidas de França, sobretudo agasalhos para os miúdos e algumas guloseimas para todos. E chegaram, finalmente, os dias tranquilos, de recuperar energias. Aconchegados na casa paterna, saíamos uma ou outra vez para um almoço familiar alargado com os primos da Broa, à sombra das árvores de fruto que rodeavam o grande tanque, em cujas bordas a Tia Florinda cultivava as suas flores, com especial desvelo pelos manjericos, perfumados e resistentes durante longos meses e onde os pequenos se entretinham a fingir que pescavam ou que nadavam numa pequena altura de água e com a ajuda de duas improvisadas pranchas de 

               Nessa altura ainda tínhamos a companhia da vossa trisavó Casimira, com noventa e cinco anos, bastante lúcida mas já quase cega e que havia de falecer em vésperas de fazer cem anos. E a tarde corria mansa, com o primo Emílio e a Maria Deodata, sua mulher, em amena conversa com os restantes familiares e as suas duas filhas, a Zulmira e a Inês Maria entretidas com os primos, apesar da diferença das idades. Mais do que agora, o ar estava cheio de sons e de perfumes: chilreavam os passarinhos, zangarreavam os grilos e as cigarras, e o perfume dos manjericos, aliado ao das xaras e dos eucaliptos transformavam aquele canto da horta num pequeno Éden, em que todos nos sentíamos felizes e que muitas vezes relembrámos com saudades

                  Frequentemente dávamos grandes passeios pela Serra de S. Mamede, até Castelo de Vide ou apenas até à Penha, onde visitávamos a capelinha e apreciávamos a paisagem estendida a nossos pés até se perder de vista. Acompanhavam-nos os Bisavós, que assim aproveitavam para sair de casa, embora o Bisavô fosse todos os dias ao Café Alentejano, encontrar-se com o seu grupo de amigos, os catuas, como lhes chamava em língua tétum que tinha aprendido em Timor. Às vezes fazíamos piqueniques em sítios pitorescos e aí nos deliciávamos com o paio de lombo, os queijos da região e o saboroso pão alentejano. Não faltavam, também, algumas frutas da época e as deliciosas boleimas, com o seu recheio de maçã e o seu gostinho a açúcar meio caramelizado e a canela.

                  Quem fazia as compras, no mercado, era o Bisavô ou uma mulher de recados, a Senhora Adelina, mas quem sempre pontificou na cozinha era a Bisavó, que fazia deliciosas comidas regionais, um inesquecível caldo verde, cujas couves lhe levavam, a cortar, muito fininhas, uma grande parte da manhã e um cabrito no tacho que era de comer e chorar por mais. Não podia conceber que alguém invadisse os seus domínios e foi com muita relutância que me deixou fazer um bolo para um lanche, com a batedeira que, na melhor das intenções, eu tinha trazido de Luanda.

                 Daí em diante, todos os sábados íamos abastecer-nos de deliciosos doces regionais, feitos pelas irmãs Martelas. Eu só tinha pena do Bisavô que, sofrendo de diabetes, tinha de se contentar com uma espécie de pitas, feitas de massa e azeite e sem pitada de açúcar. E contentava, pois, dotado duma grande força de vontade, nunca se deixou tentar pelas guloseimas.

               Mitigadas as saudades, resolvemos ir dar um passeio, o Vôvô e eu, por alguns sítios pitorescos ao Norte de Lisboa. Já se começava a sentir o Inverno mas, apesar disso, fomos aproveitando a proximidade ou a presença do mar: ficámos numa Residencial na Ericeira, onde, ao jantar e ao serão, junto à lareira, éramos os únicos hóspedes; em Santa Cruz, estive em risco de ser levada por uma onda, junto da rocha que ali faz uma espécie de arco e que eu quis ver mais de perto; em Peniche, mirámos ao longe as Berlengas, de que estávamos afastados por ondulação que nenhum pescador quis arrostar.

              Regressámos a casa retemperados e por lá nos ficámos durante todo o Inverno, fazendo pequenos passeios e uma ou outra deslocação a Lisboa, uma das vezes com os pequenos e a sua ama, a Alice. Ficámos instalados na Casa de Santa Zita, à Estrela, num ambiente familiar. Fomos, com os três, visitar alguns monumentos mais emblemáticos de Lisboa: o Mosteiro dos Jerónimos, a Torre de Belém e, claro, o Jardim Zoológico. Não nos alargámos mais porque eles ainda eram muito pequenos e não conseguiriam reter muita informação.

                Deixámo-los novamente em Portalegre e partimos num outro passeio, desta vez no Algarve: S Brás de Alportel, Faro, Loulé, e por aí fora até à Pousada do Infante, em Sagres, cuja paisagem muito nos impressioou.

                  Em Portalegre recebemos a visita do Gilbert, da Milú e dos seus Pais e também das pequenas Marie, minha afilhada e Jeanne e com eles percorremos os arredores: Castelo de Vide e Marvão, cujo castelo encantou os quatro miúdos, que até foram autorizados a brincar com umas velhas espingardas e uns capacetes do Museu.

                 O fim das férias aproximava-se a passos largos, apesar das prorrogações que, por mais do que uma vez, nos tinham sido concedidas pela Junta Médica que via a necessidade de recuperarmos duma demasiado longa permanência, seguida, em clima tropical.

                E assim regressámos a Luanda, de novo no Infante Dom Henrique, com mais saúde e felizes pelo tempo passado com familiares e amigos, em vários pontos de Portugal.                

 

                                   Até à próxima carta. Beijinhos da Vóvó

                       

           

publicado por clay às 11:04 | link do post | comentar | favorito
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