Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quinta-feira, 10.05.12

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           Meus queridos netos:

 

 

                        O Zezinho talvez não – porque ainda era muito pequeno – mas a Cristininha deve lembrar-se deste pequeno diálogo que ouvi, quase sem querer, enquanto escolhia variadas flores para compor um raminho. Transmito-vo-lo por o ter achado muito interessante. Se o esqueceram, aqui vai, para o álbum das recordações, tanto mais valioso quanto mais anos forem decorrendo.

 

                        Eram duas meninas que, em vez de se ocuparem a apanhar flores, remexiam, cada uma com seu pauzinho, o extenso lameiro que bordejava a mata cortada por um ribeirinho cantante.

 

                        - Ui! Que bicharoco tão feio. Nunca vi nenhum igual nos nossos “domínios”.

 

                        - Nem admira, sua Martinha sabichona. Nós não vivemos no grandioso Brasil, nem em nenhum outro país da América do Sul, onde proliferam por todo o lado. Também se podem encontrar em quase todas as partes do mundo. Este deve pertencer a alguma colónia desgarrada…

 

                        - Está bem. Mas antes de mais, diz-me lá como se chama esta…lesma, caracoleta, ou seja lá o que for.

 

                        - Eu sempre lhe ouvi chamar “bicho-de-conta”, mas só uma vez, em que a minha Mãe (tua Avó, claro), descobriu um, com o seu cinzento, muito bem disfarçado na lama.

 

                        A Vóvó ficou tão contente! Ela já tinha visto desenhos do animalzinho (esticado mostrando claramente os anéis que formavam o seu corpo e se enrolavam até este ficar com a forma de bola, de patinhas no chão ou com o dorso mais ou menos acastanhado ou prateado) e foi logo tratar de saber coisas sobre tão raro animal. Aprendeu então que pertence à mesma classe dos caracóis, que é útil para a reciclagem dos metais dispersos na água e que se alimenta de plantas novas, abundantes à sua volta. Os seus inimigos principais são as aranhas, de que se defendem libertando secreções repelentes. Ou então, graças aos seus anéis, enrolam-se em forma de conta, donde lhe vem um dos vários nomes por que é conhecido. E muitas, muitas mais coisas aprendeu. Faltava-lhe, no entanto, a sabedoria da Mãe. Quando lhe contou a sua descoberta, esta disse-lhe que, de facto, naquela região, predominantemente seca, o bichinho-de-conta era tão raro que ela própria só  ainda vira dois ou três o que lhe dera a ocasião de aprender uma lengalenga que nunca mais esquecera.

 

                        - Conta lá, Vóvó, conta lá!

 

                        Lembrava-se dela como se a tivesse ouvido na véspera e aí a deixava, principalmente para a Martinha Sabichona.

 

                        - Também quero, também quero: quem é que disse que eu não gosto de aprender coisas novas, especialmente quando são bonitas (e às vezes com tanta sabedoria como as que sabe a Vóvó)?

 

                        - Então escutem lá, e nunca mais se esquecerão do simpático “bicho-de-conta”:

 

 

                      Debaixo da pedra

                      mora um bichinho,

                      cinzento ou castanho,

                      muito redondinho.

                     Tem medo do sol,

                     Tem medo de andar,

                     Bichinho-de-conta

                     não sabe contar.

                     Muito redondinho,

                     rebola no chão,

                     rebola na erva

                     e na minha mão.

                                        (autor anónimo)

 

                        - Que bonito! Que bonito! – disseram as duas em coro, enquanto a Avó, fingindo curvar-se para colher mais uma flor, enxugava disfarçadamente uma lágrima que a lengalenga e a lembrança da sua Mãe lhe toldara os olhos. É que ela queria guardá-los, sempre luminosos e ternos, para as suas duas netinhas.

 

                                   Lisboa, 3 de Maio de 2012

 

                                   Clementina Relvas              

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Quarta-feira, 14.04.10

 

Um aspecto da destruição da Floresta Amazónica, considerada o "pulmão" do nosso Planeta. É a maior floresta tropical do mundo. (Fonte: Google)

        

Aqui havia uma frondosa floresta, com árvores cuja idade já ninguém conhecia e raras, muito raras. Para mim, era um vestígio da obra incomparável de Deus, que, no momento da Criação, tudo fez para um mundo perfeito. Havia sequóias, cuja altura desafiava os céus e assim podiam brincar com as nuvens, tão diferentes em forma e densidade; havia gigantes fetos arbóreos cuja copa se abria generosa, para acolher aves de toda a espécie, quando fazia sol ou se chovia. E outras, muitas outras, com nomes exóticos que a minha memória não foi capaz de guardar.

 

                Um dia apareceu por ali um grupo de homens, ignorantes e pobres – características que em geral andam juntas – comandados por um outro, impante de orgulho e de anéis de ouro, que, apontando para uma potente e moderna serra mecânica, lhes disse peremptório:

 

                - Eu quero isto arrasado quanto antes. Com as máquinas que estão para chegar e a força dos vossos braços movidos pelo meu dinheiro que, aliás estais sempre a achar pouco, não vou aqui deixar pedra sobre pedra, ou melhor, uma árvore, um arbusto, mas só o chão coberto de capim, que em breve as chamas vão reduzir a cinzas. Depois semearei forraginosas e trarei para aqui as minhas duzentas vacas, que em breve parirão, transformando a minha manada na maior que, por aqui, jamais se viu.

 

                Os operários ficaram, ao mesmo tempo, deslumbrados e receosos da tarefa que os esperava, mas, na sua imaginação, já viam aquele vasto território transformado num verdejante prado e o patrão a enriquecer dia a dia, mas sem nunca perder a arrogância e a avareza. Seria o rei daquela pradaria e, pelo menos, dar-lhes-ia trabalho que os livraria de morrer de fome, com as suas famílias.

 

                Ora, acocorado atrás dos outros todos, estava um índio que tinha nascido ali perto e que, da sua infância, recordava um desafio que tinha feito a si próprio: trepar até ao cimo duma sequóia e, lá do alto, desvendar todos os segredos da floresta e do rio, que, num jogo de esconde-esconde, se negava a mostrar-se em toda a sua extensão e a sua força. A verdade é que, por mais esforços que tivesse feito, nunca tinha conseguido ultrapassar a altura do coqueiro que o avô plantara no quintal, mas a sua consolação era que nenhum dos seus amigos, por mais ágeis que fossem, tinham conseguido levar a cabo tal façanha.

 

                Tinha ouvido conversas de estrangeiros que falavam dessas transformações que estavam a ocorrer em toda a parte como se dum flagelo se tratasse, deixando as populações locais sem ar puro para respirarem e, pior que tudo, afastando para longe as chuvas benfazejas que faziam crescer o milho. Por ele, o que mais lhe doía era pensar que tinha de desistir do seu sonho e renunciar àquelas árvores que tinham dado sentido à sua infância e que nada mais voltaria a ser como fora.

 

                Ocultou a cabeça num chapéu de abas largas, recordação dum desses estrangeiros, deixou correr duas lágrimas teimosas e afastou-se devagar, pensando que, sozinho, nada podia fazer para evitar a catástrofe, mas, pelo menos, o seu coração estaria tranquilo e puro para rezar aos seus deuses por aquela abençoada terra onde nascera e que era parte da sua pobre vida.     

          

Clementina Relvas   

 

publicado por clay às 14:03 | link do post | comentar | favorito
Domingo, 11.11.07

 

         Meus queridos netos:

 

         Fala-se agora muito de emigrantes – os que saem de Portugal para irem tentar a sorte lá fora – e talvez ainda mais de imigrantes – os que deixam os seus países, em qualquer parte do mundo, e vêm para Portugal a fazer ou refazer as suas vidas.

 

         Mas que foi o nosso país senão um país de permanente emigração? Não vou falar de tempos remotos, em que, sobretudo com os Descobrimentos, os nossos homens corajosos e aventureiros, partiram a conhecer e a dar a conhecer o mundo e muitos por lá ficaram, uns vivos e outros mortos. Depois das Descobertas, a maior parte destas terras receberam portugueses que aí se estabeleceram para ganhar honras e riquezas ou para levar aos povos que lá viviam o conhecimento de Deus e dos seus mandamentos. Dos últimos, os missionários, alguns alcançaram um lugar cimeiro nas letras como o Padre António Vieira com os seus sermões e Cartas. Outros elevaram-se a cumes ainda mais altos, como S. Francisco Xavier, que, embora sendo espanhol, foi nas terras portuguesas do Oriente que, em língua portuguesa deixou as sementes de Fé e de civilização, num rastro que ainda hoje perdura, fruto de trabalho exaustivo e de total dedicação aos outros, o que lhe mereceu figurar na lista dos grandes Santos.

 

         Mas, sem deixarmos de os admirar e de lhes estar gratos, voltemo-nos para tempos mais recentes, para os brasileiros de torna-viagem  que assim se chamou aos portugueses que, no século XIX, deixaram as suas aldeias e os seus familiares e partiram para o Brasil, donde depois regressaram, uns ostentando o seu sucesso e a sua riqueza, outros tão pobres como daqui tinham partido apesar de terem travado duras lutas, contra o meio, a doença, as saudades.

 

         Se quiserem conhecer mais a fundo quanto acabo de narrar, leiam Camilo Castelo Branco, em cujos romances encontramos, a cada passo, brasileiros regressados à terra, não só para casarem, graças ao seu dinheiro, com raparigas mais novas, mas também alguns deles para fundarem obras de carácter social. Leiam também a Selva de Ferreira de Castro, onde encontrarão um rapazinho – ele próprio – que, aos doze anos, emigrou para o Brasil e aí conheceu a vida nos seringais e outros infernos.

 

         Por mim, vou-me cingir à nossa família que também contou com muitos emigrantes para o Brasil e, mais tarde para África, sobretudo para Angola e Moçambique.

 

         E que fomos nós, o Vôvô e eu, senão emigrantes em Angola? Só não nos consideravam assim por uma questão política: tinha-se legislado que Portugal era, não só o território europeu, mas também as terras sob nossa administração além-mar, ou seja, como então se dizia, “de Minho a Timor”, ultimamente designadas províncias ultramarinas e antes colónias.

Na estrutura do Governo, entre os vários ministérios, havia o Ministério das Colónias que depois passou a denominar-se Ministério do Ultramar.

 

         E que foi o vosso Bisavô José Relvas em Timor, para onde levou mulher e um filho, o Vôvô, quase acabado de nascer? Aí sofreu os tormentos de viver quatro anos, ele e centenas de outros portugueses, num campo de concentração nipónico, já com a família a salvo em Portugal, a qual durante aquele tempo todo nem sabia se ele estava vivo ou morto, por completa falta de notícias. Não se lhe chamava emigrante porque ele era militar e tinha sido chamado para uma missão de soberania. Mas foi longe da Pátria que lhe nasceram e se criaram os quatro filhos, o mais velho dos quais, o Vôvô, embarcou para lá com menos de um ano de idade e regressou já quando tinha cerca de quinze.

 

         Mas voltemos aos brasileiros de torna-viagem. Dos primeiros que tenho notícias na família é dos meus avós paternos, Manuel Curato e Sebastiana. Não sei nada do que foi a vida deles no Brasil, nem onde estiveram, porque no tempo em que os conheci estes assuntos ainda não me interessavam. Mas, na grande casa deles, respirava-se Brasil por todos os lados: eram as grandes malas de cabedal, enfeitadas com tachas de metal  ou baús de couro com os mesmo enfeites, era uma secretária de mogno, de harmónio, cheia de gavetinhas que suscitavam a minha constante curiosidade; era uma mesa de jogo de pé de galo, delicadamente torneado mas que, com os anos, não resistiu ao caruncho; era uma mesa, enorme, também de madeira exótica, onde em dias de festa a família – tiveram e criaram dez filhos – se reunia e onde recebiam convidados e, finalmente, um pequeno toucador também de pés torneados e com espelho oval, a única que me coube, e que ainda hoje, religiosamente guardado por mim, é a peça de mobiliário que mais estimo. Vocês conhecem-la bem quando cá vêm a casa:

                                      

                 Dizia eu que pouco sei das vidas deles como emigrantes, mas recordo-me de me ter contado um dia a minha Avó que, quando chegaram a Lisboa, traziam numa mala a quantidade de libras de ouro suficientes para comprarem uma boa propriedade na zona do Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa,. Mas nem o facto de aí viver um irmão que, viria a ter dezoito filhos, e a vontade da minha Avó o dissuadiram de regressarem à nossa aldeia e aí investirem esse dinheiro em propriedades que, numa aldeia tão pobre, fizeram deles as pessoas mais abastadas. Quando contava este caso, a minha Avó rematava-o sempre com o provérbio: “Desgraçado passarinho que nasce em ruim ninho.”.

 

         Tinham uma casa muito grande e com uma estranha estrutura: uma entrada de carros da rua para o quintal, passando por baixo das salas; uma divisão, uma espécie de cave; onde se preparava o pão e que nos servia de esconderijo nas brincadeiras; uma cozinha e um forno anexos à casa e, no vasto quintal, a pocilga, a capoeira e muitas árvores de fruto, em particular uma imponente nogueira que resistiu valentemente ao ciclone de Fevereiro de1941. E, numa das lojas, como era uso, o cavalo.

 

         Apesar de terem tantos filhos, viviam confortavelmente e, a certa altura, o meu Avô até achou reunir condições para comprar uma grande quinta, do outro lado do rio. Tinha sido um convento pelo que ficou conhecida por Convento das Águias e hoje é uma importante casa  vinícola na posse de estrangeiros. Mas quando o meu Avô se preparava para fechar o negócio, não sei por que forças de interesses familiares ou outros do proprietário, este morreu envenenado e o negócio gorou-se.

 

         Quanto ao meu Pai que, como eles, tentou a sua sorte no Brasil, também regressou à terra de mãos quase vazias. Convidado para uma loja maçónica, não lhe agradaram os rituais de iniciação e abandonou a cerimónia de investidura a meio, o que lhe valeu inimizades e perseguições que, certamente, não ajudaram o seu sucesso.

        

       Para Angola, emigraram muitos dos meus familiares, entre os quais cinco dos filhos do meu Avô. Só um enriqueceu numa fazenda de tabaco mas a vida de cada um deles – como a de qualquer pessoa – dava para escrever um romance sem ser preciso inventar muitas peripécias.

 

         Mas não tendo eu estofo de escritora, limito-me a deixar nestas cartas notícias do que foi a vida da nossa família nas gerações mais próximas e, sempre que vem a talho de foice, a fazer o paralelo entre os tempos que foram e os que são hoje.

 

         Até à próxima e beijinhos.

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