Meus queridos netos:
Fala-se agora muito de emigrantes – os que saem de Portugal para irem tentar a sorte lá fora – e talvez ainda mais de imigrantes – os que deixam os seus países, em qualquer parte do mundo, e vêm para Portugal a fazer ou refazer as suas vidas.
Mas que foi o nosso país senão um país de permanente emigração? Não vou falar de tempos remotos, em que, sobretudo com os Descobrimentos, os nossos homens corajosos e aventureiros, partiram a conhecer e a dar a conhecer o mundo e muitos por lá ficaram, uns vivos e outros mortos. Depois das Descobertas, a maior parte destas terras receberam portugueses que aí se estabeleceram para ganhar honras e riquezas ou para levar aos povos que lá viviam o conhecimento de Deus e dos seus mandamentos. Dos últimos, os missionários, alguns alcançaram um lugar cimeiro nas letras como o Padre António Vieira com os seus sermões e Cartas. Outros elevaram-se a cumes ainda mais altos, como S. Francisco Xavier, que, embora sendo espanhol, foi nas terras portuguesas do Oriente que, em língua portuguesa deixou as sementes de Fé e de civilização, num rastro que ainda hoje perdura, fruto de trabalho exaustivo e de total dedicação aos outros, o que lhe mereceu figurar na lista dos grandes Santos.
Mas, sem deixarmos de os admirar e de lhes estar gratos, voltemo-nos para tempos mais recentes, para os brasileiros de torna-viagem que assim se chamou aos portugueses que, no século XIX, deixaram as suas aldeias e os seus familiares e partiram para o Brasil, donde depois regressaram, uns ostentando o seu sucesso e a sua riqueza, outros tão pobres como daqui tinham partido apesar de terem travado duras lutas, contra o meio, a doença, as saudades.
Se quiserem conhecer mais a fundo quanto acabo de narrar, leiam Camilo Castelo Branco, em cujos romances encontramos, a cada passo, brasileiros regressados à terra, não só para casarem, graças ao seu dinheiro, com raparigas mais novas, mas também alguns deles para fundarem obras de carácter social. Leiam também a Selva de Ferreira de Castro, onde encontrarão um rapazinho – ele próprio – que, aos doze anos, emigrou para o Brasil e aí conheceu a vida nos seringais e outros infernos.
Por mim, vou-me cingir à nossa família que também contou com muitos emigrantes para o Brasil e, mais tarde para África, sobretudo para Angola e Moçambique.
E que fomos nós, o Vôvô e eu, senão emigrantes em Angola? Só não nos consideravam assim por uma questão política: tinha-se legislado que Portugal era, não só o território europeu, mas também as terras sob nossa administração além-mar, ou seja, como então se dizia, “de Minho a Timor”, ultimamente designadas províncias ultramarinas e antes colónias.
Na estrutura do Governo, entre os vários ministérios, havia o Ministério das Colónias que depois passou a denominar-se Ministério do Ultramar.
E que foi o vosso Bisavô José Relvas em Timor, para onde levou mulher e um filho, o Vôvô, quase acabado de nascer? Aí sofreu os tormentos de viver quatro anos, ele e centenas de outros portugueses, num campo de concentração nipónico, já com a família a salvo em Portugal, a qual durante aquele tempo todo nem sabia se ele estava vivo ou morto, por completa falta de notícias. Não se lhe chamava emigrante porque ele era militar e tinha sido chamado para uma missão de soberania. Mas foi longe da Pátria que lhe nasceram e se criaram os quatro filhos, o mais velho dos quais, o Vôvô, embarcou para lá com menos de um ano de idade e regressou já quando tinha cerca de quinze.
Mas voltemos aos brasileiros de torna-viagem. Dos primeiros que tenho notícias na família é dos meus avós paternos, Manuel Curato e Sebastiana. Não sei nada do que foi a vida deles no Brasil, nem onde estiveram, porque no tempo em que os conheci estes assuntos ainda não me interessavam. Mas, na grande casa deles, respirava-se Brasil por todos os lados: eram as grandes malas de cabedal, enfeitadas com tachas de metal ou baús de couro com os mesmo enfeites, era uma secretária de mogno, de harmónio, cheia de gavetinhas que suscitavam a minha constante curiosidade; era uma mesa de jogo de pé de galo, delicadamente torneado mas que, com os anos, não resistiu ao caruncho; era uma mesa, enorme, também de madeira exótica, onde em dias de festa a família – tiveram e criaram dez filhos – se reunia e onde recebiam convidados e, finalmente, um pequeno toucador também de pés torneados e com espelho oval, a única que me coube, e que ainda hoje, religiosamente guardado por mim, é a peça de mobiliário que mais estimo. Vocês conhecem-la bem quando cá vêm a casa:
Dizia eu que pouco sei das vidas deles como emigrantes, mas recordo-me de me ter contado um dia a minha Avó que, quando chegaram a Lisboa, traziam numa mala a quantidade de libras de ouro suficientes para comprarem uma boa propriedade na zona do Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa,. Mas nem o facto de aí viver um irmão que, viria a ter dezoito filhos, e a vontade da minha Avó o dissuadiram de regressarem à nossa aldeia e aí investirem esse dinheiro em propriedades que, numa aldeia tão pobre, fizeram deles as pessoas mais abastadas. Quando contava este caso, a minha Avó rematava-o sempre com o provérbio: “Desgraçado passarinho que nasce em ruim ninho.”.
Tinham uma casa muito grande e com uma estranha estrutura: uma entrada de carros da rua para o quintal, passando por baixo das salas; uma divisão, uma espécie de cave; onde se preparava o pão e que nos servia de esconderijo nas brincadeiras; uma cozinha e um forno anexos à casa e, no vasto quintal, a pocilga, a capoeira e muitas árvores de fruto, em particular uma imponente nogueira que resistiu valentemente ao ciclone de Fevereiro de1941. E, numa das lojas, como era uso, o cavalo.
Apesar de terem tantos filhos, viviam confortavelmente e, a certa altura, o meu Avô até achou reunir condições para comprar uma grande quinta, do outro lado do rio. Tinha sido um convento pelo que ficou conhecida por Convento das Águias e hoje é uma importante casa vinícola na posse de estrangeiros. Mas quando o meu Avô se preparava para fechar o negócio, não sei por que forças de interesses familiares ou outros do proprietário, este morreu envenenado e o negócio gorou-se.
Quanto ao meu Pai que, como eles, tentou a sua sorte no Brasil, também regressou à terra de mãos quase vazias. Convidado para uma loja maçónica, não lhe agradaram os rituais de iniciação e abandonou a cerimónia de investidura a meio, o que lhe valeu inimizades e perseguições que, certamente, não ajudaram o seu sucesso.
Para Angola, emigraram muitos dos meus familiares, entre os quais cinco dos filhos do meu Avô. Só um enriqueceu numa fazenda de tabaco mas a vida de cada um deles – como a de qualquer pessoa – dava para escrever um romance sem ser preciso inventar muitas peripécias.
Mas não tendo eu estofo de escritora, limito-me a deixar nestas cartas notícias do que foi a vida da nossa família nas gerações mais próximas e, sempre que vem a talho de foice, a fazer o paralelo entre os tempos que foram e os que são hoje.
Até à próxima e beijinhos.