Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Quarta-feira, 16.09.09

 

 

 

Meus queridos netos:


A Cristininha sabe muito bem quem é a Milú, a amiga que a Vóvó conheceu na Faculdade e com a qual passou um mês em Pau, com uma bolsa de estudo para podermos aperfeiçoar o nosso Francês, especialmente o falado. O Zezinho, com os seus três anos e meio, nada sabe acerca dela, como é óbvio.


Foi durante esse mês passado em Pau (e de que já vos falei) que a Milú conheceu o Gilbert, com quem veio a casar. Tiveram duas filhas, a mais velha das quais, a Marie, minha afilhada de Baptismo. Após a descolonização da Argélia, onde o marido tinha nascido e era professor, tiveram de ir viver para França. Não tanto, certamente, por acaso como pelas românticas recordações que guardavam daquela bonita região dos Pirinéus franceses. Instalaram-se em Bayonne, onde o Gilbert continuou a sua carreira docente e a Milú se dedicou, entre outras coisas, ao ensino da Língua Portuguesa a estrangeiros. Apesar de perfeitamente integrada, desempenhando mesmo, já há alguns anos, o cargo de Presidente da Associação Portugal-França naquela cidade, a Milú jamais esqueceu Portugal, onde sempre veio passar as férias grandes e, agora, regressa duas vezes por ano com o marido e a filha, para matar saudades da nossa terra, tanto mais que a toda a sua família soube transmitir o amor e a o encantamento pelo nosso País.


Mas este preâmbulo é meramente informativo e nada tem a ver com o título desta carta que pretende reavivar as recordações daquele Verão já tão longínquo (por volta de 1950), em que a Milú acedeu ao meu convite de passar férias na minha pequena e remota aldeia, onde, nessa altura, ainda não havia luz eléctrica, água canalizada nem qualquer comodidade que nenhuma lisboeta dispensava.


Imagine-se a Milú, nada e criada em Lisboa e tendo, para mais, o estatuto de filha única e mimada, a passar parte da tarde e o dia seguinte no comboio da linha do Douro e a desembarcar no Pinhão, onde a aguardava o meu Pai com o cavalo que a havia de levar até nossa casa, pelo íngreme e sinuoso caminho que, por alturas de Valença do Douro, incluía um troço particularmente difícil, conhecido pelo nome de «Sacas Atrás», que lhe advinha do facto de as cargas dos animais irem escorregando perigosamente, se os almocreves lhes não acudissem para as ajustarem.


Lá para o fim do dia, eis que chega a nossa amiga, cansada como não podia deixar de ser, mas deslumbrada com as majestosas paisagens do Douro vinhateiro, em toda a pujança das suas vinhas carregadas de verdes parras e de uvas em começo de maturação. Estava ainda longe o tempo em que tal maravilha, de antiquíssimos socalcos criados a pulso pela mão do homem, seria, como hoje acontece, qualificada como Património da Humanidade e destino turístico dos mais atractivos de Portugal.


Mas voltemos à nossa Milú: não só não mostrou estranhar a nossa casa e a simplicidade do nosso quotidiano, mas, pelo contrário, em breve era mais uma filha para os meus Pais e outra irmã para a Tia Maria Alice. Ia connosco apanhar figos que ela nunca vira na figueira, regar a horta ao pôr-do-sol, quando as vidraças longínquas das casas ricas de Tabuaço, do lado de lá do rio Távora, parecia estarem a ser devoradas por indomáveis incêndios e tudo para ela era novo e quase mágico.


Um dia, com a família próxima e alguns amigos, fomos fazer um lauto pique-nique amorosamente preparado pela minha Mãe e a que nem sequer faltava a sua deliciosa bola de carne, ao antiquíssimo eremitério de S. Pedro das Águias, encaixado entre altíssimas rochas milenárias, na margem direita do rio Távora. É um sítio misterioso, rodeado de antigas lendas e com a particularidade de ter o pórtico principal nas traseiras, voltado para a alta muralha de pedra, coberta de líquenes e ervas bravias. Tem uma ornamentação zoomórfica, que já mal se distingue dos veios do granito, corroído pelo tempo. Erigido, talvez, na época pré-cristã, foi, nos séculos XII-XIII, propriedade dos monges cistercienses que em breve mandaram erguer um magnífico Convento perto dali, hoje transformado em casa residencial e propriedade agrícola, famosa pelos seus vinhos.


Com o rio ali tão perto, depois de esgotadas as histórias e anedotas da minha Mãe e as nossas cantorias e jogos, resolvemos ir pescar com as nossas canas improvisadas. Ainda tenho na retina a imagem da Milú, muito interessada na sua cana de pesca, a ver se alguma boga picava o isco. Mas em vão…


Uma aventura maior ocorreu quando resolvemos ir à Festa de Santa Eufémia, nos arredores de Penela. Eram muitas horas de caminho, a cavalo, passava-se lá a noite e só no dia seguinte se regressava a «penates». Para uma aventura destas, não podíamos ir, raparigas e sozinhas. Valeu-nos a companhia do meu primo Flávio, bastante mais velho do que nós e andarilho de todos os caminhos, sobretudo quando uma das «cavaleiras» foi vencida pelo tropeção do nosso Carriço e veio parar ao chão, felizmente sem se machucar com gravidade. Ora, tanto esta «maravilhosa» odisseia como os farnéis para todas as refeições, fizeram as delícias da minha amiga que, penso, ainda hoje, mais ou menos esbatidas, as guardará na memória.


E, quando chegou a hora de regressar a Lisboa e à Faculdade, já as saudades eram tantas que não havia melhor explicação para as lágrimas que, furtivamente, se escapavam de todos os olhos.


Desejando que também os meus netos, ao chegarem à minha idade, tenham um tesouro de tão simples mas impressivas recordações como as que hoje lhes confio na minha carta, ficam os beijinhos de sempre e o muito amor da Vóvó.

 

 

 

publicado por clay às 12:32 | link do post | comentar | favorito
Segunda-feira, 09.07.07

                                  

 

            Queridos netos:

 

            Mas férias de três meses? E passados numa aldeia perdida de Trás-os-Montes, com uma centena de habitantes, na quase totalidade analfabetos, sem cinema, nem televisão e até sem rádio? Como era isso possível? – Ouço-vos perguntar. E só não acrescentam que devia ser uma seca, com receio de me magoarem.

 

            Pois olhem: não era nenhuma seca. Passava muito tempo a ler – e muito li eu nesses anos! – mas não só. Havia um pequeno grupo de pessoas da terra que, orientados pela Lúcia – primeiro estudante e depois professora do Liceu, mais velha do que eu dez anos – quando o calor amainava um pouco, dava grandes passeios a pé até ao Souto, onde geralmente se parava à sombra dos castanheiros e ai se contavam casos ocorridos ao longo do ano, se resumia para o auditório o folhetim do Jornal de Notícias ou se programavam os bailaricos. Estes tinham lugar domingo à tarde, em casa da Lúcia e, na maior parte dos casos, só havia um homem presente: o tocador de acordeão. Ele tocava, aliás muito bem e nós cantávamos cantigas do folclore, previamente ensaiadas também pela Lúcia: viras, malhões, corridinhos e algumas de cariz cómico “Eu casei-me com um ferreiro, / deu-me vontade de rir:/ tinha a cara enfarruscada, / só os dentes a luzir”, “Indo eu, indo eu / a caminho de Viseu, / encontrei o meu amor. / Ai Jesus que lá vou eu” e ainda “A saia da Carolina”, a “Tia Anica de Loulé”, muitas, mas sempre as mesmas: todos os anos as mesmas, sem nos enfadarmos.

 

            Às vezes havia cinema ambulante na nossa ou numa aldeia vizinha; no segundo caso, lá íamos nós, em grupo, com lampiões de azeite a devassar o caminho, divertindo-nos não tanto os filmes, geralmente de má qualidade mas os comentários dos espectadores, gente do campo, fascinada pelas farsas ou pelas aventuras. E a propósito de cinema, ocorre-me o seguinte episódio

 

            Em quase todas as terras há o “tontinho” da aldeia. Também na minha havia um que já conheci adulto e que, além de deficiências na fala, tinha a mania de pedir namoro a todas as raparigas que, claro está, não lho levavam a mal.

 

            Um dia, estava alguém a contar como tinha sofrido para extrair um dento do siso e logo o “tolinho”, na sua fala “tate-bitates” disse peremptoriamente:

 

            - Ui! Isso é pior do que ir ao cinema!

 

            Fiquei intrigada com o comentário e indaguei o que justificava aquela inesperada e desesperada opinião. Ele morava quase ao lado duma família de médicos que vinha sempre do Porto passar uma parte das férias de verão na aldeia. No fim duma dessas visitas, convidaram o “tolinho” a ir passar uns dias ao Porto. Ele ficou radiante, pois nunca tinha saído da terra e gostava daquelas pessoas que o tratavam tão bem. No Porto levaram-no a dar alguns passeios singelos (à Foz, ao Palácio de Cristal) e, numa bela tarde, resolveram levá-lo a um cinema, onde o deixaram, feliz da vida. À hora de acabar a sessão, lá estavam com o carro para o regresso a casa. Quando lhe perguntaram se tinha gostado, respondeu sem hesitação, embora numa linguagem que não consigo reproduzir:

 

            - Eu não percebi a fita mas o pior foi ter ficado mal sentado, numa cadeira de fundo tão estreitinho que já não sentia as nalgas.

 

            E, depois de várias tentativas, lá conseguiram perceber que ele não tinha baixado o assento da cadeira...Dai em diante, quando ouvia contar qualquer facto desagradável, logo acudia a dizer, cheio de convicção:

 

            - Eh lá! É pior do que ir ao cinema!

 

            De vez em quando também fazíamos “assaltos” de mascarados, como se fosse Carnaval. Esses partiam sempre da iniciativa da minha Mãe que era muito extrovertida e, casada com um homem vinte anos mais velho, aproveitava todos os pequenos ensejos para dar largas ao seu bom humor e criatividade. Para se mascararem as mulheres, raparigas e crianças vestiam roupas masculinas, geralmente muito grandes, faziam um bigode a carvão, iam a algum baú desencantar maravilhas trazidas em tempos do Brasil – chapéus, plumas, malinhas de senhora – e lá seguiam com aqueles trajes trapalhões e iam bater à porta de alguém que sempre nos recebia com agrado, com um cálice de vinho fino e os típicos biscoitos de azeite, quando havia. As caras iam tapadas e a parte mais engraçada consistia em adivinhar quem era quem, embora isso não fosse muito difícil porque éramos todos conhecidos. Se calhava, logo ali se armava um bailarico ou uma sessão de cantigas, por vezes ao desafio. Também nisso a minha Mãe levava a palma, porque tinha muita facilidade em rimar e um espírito crítico apurado.

 

            Outra das minhas ocupações, nas férias, tinha a ver com os trabalhos do campo. Do que eu mais gostava era de ir com o meu Pai apanhar figos, sobretudo se era uma propriedade que ficava muito longe da aldeia, já perto do rio Távora. Saíamos de casa cedo, a cavalo, e munidos dum saboroso lanche que normalmente incluía pão, presunto, e às vezes uma omoleta e, para o meu Pai, uma garrafa de vinho da nossa lavra. Embora não sentisse fome – apetite, sim e muito – era com grande ansiedade que aguardava o momento de devorar a merenda.

 

Farnéis assim, só os que levava quando, acabadas as férias, regressava a Lisboa. Nesses havia geralmente um coelho frito ou assado que deu origem a um quiproquó engraçado. Numa das vezes, a minha Mãe comentava na sua primeira carta daquele ano:

 

- Desta vez levaste um coelho e peras!

 

Muito admirada, tive de confessar à minha Mãe que o coelho era muito bom mas não tinha visto peras nenhumas. Tinha-me já esquecido que esta expressão “e peras” era uma forma de superlativar, ou seja, o que a minha Mãe queria dizer é que era um senhor coelho, um coelho enorme.

 

Outra coisa, que muito gostava de fazer era ir regar uma horta que tínhamos não longe de casa. Estava inserida numa propriedade de três herdeiros e, como um dos mais graves problemas da minha aldeia, nesses anos, era a falta de água, regavam-se as hortas “à vez”. Nós tínhamos direito a três dias por semana, o que era muito bom.

 

Ficava num alto, com uma panorâmica para a serra de Chavães e mais longe o Marão, que nunca me cansava de admirar. Fazia-se a rega ao pôr-do-sol e era linda de ver a Vila de Tabuaço com os vidros das suas casas ricas a brilhar, irisados com o sol poente. Abria-se o boqueirão da mina e aí vinha a abençoada água, que também servia para beber, ao encontro do rego onde tinham sido plantados feijões, tomates, cenouras, salsa que a iam absorvendo sequiosos. Depois tinha de a encaminhar para outro rego e, no fim, regar o canteiro de flores que a minha Mãe não dispensava.

 

Que pacificador e prático era esse trabalho, tido por mim como uma bênção que jamais esquecerei.

 

Beijinhos do Vóvós e até à próxima carta.

 

                             

           

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