Meus queridos Netos:
Naquele tempo, quando chegava a época dos figos (e embora tivéssemos muitas figueiras mais ou menos perto de casa), os primeiros a amadurecer eram os da que estava numa propriedade bem distante, já perto do rio Távora. Tinha que se descer (e depois subir, está claro), toda aquela enorme distância, por um estreito e tortuoso caminho que, à falta de qualquer outro transporte, era galgado agilmente pelo nosso cavalo Carriço.
Quando o meu Pai anunciava, quase solenemente, que no dia seguinte ia ao Serralheiro apanhar uma grande cesta de figos, logo eu acudia pedindo que me deixasse ir com ele, prometendo ajudá-lo na sua tarefa. Não era preciso insistir muito porque aquela viagem, devido à minha presença, era, pela minha Mãe, transformada naquilo que, a meus olhos, era uma autêntica festa: fazia-nos um suculento farnel de pão centeio feito por ela, fatias de presunto ou chouriço também caseiro, o miminho dum biscoito de azeite que raramente faltavam lá em casa, água para mim, vinho da nossa lavra para o meu Pai e lá partíamos os dois, montados no Carriço, ele à frente e eu atrás com a segurança de me poder agarrar a ele, caso o cavalo desse algum tropeção.
Ainda não tínhamos vencido metade do caminho, já eu apregoava a minha fome de criança e lá fazíamos uma curta paragem para petiscar moderadamente, que a viagem ia durar quase todo o dia.
Chegados ao destino, dirigíamo-nos à grande figueira, que nunca nos desiludiu: apresentava-se sempre coberta de figos já maduros, brilhantes e raiados de castanho, que nos enchiam de orgulho e de alegria, ainda antes de nos deliciarem com o seu sabor inesquecível.
Enquanto o meu Pai ia forrar a cesta de fetos viçosos, que por ali abundavam, já eu me regalava com aqueles figos polposos e docinhos, sem ligar à áspera fricção das folhas nos meus braços nus.
De facto, era o único senão. Como se estava já no começo do verão, ali particularmente abrasador, as folhas da figueira pareciam lixa viscosa e deixavam a pele comichosa e ardente, durante um longo espaço. Mas, perante a impassibilidade do meu Pai, aliás com os braços protegidos por mangas compridas, eu cumpria estoicamente a minha tarefa até ambos temos enchido a cesta, que então cobríamos com uma camada de fetos.
Procurávamos depois uma sombra protetora e regalávamo-nos com o farto lanche preparado pela minha Mãe, enquanto o meu Pai me contava histórias reais da sua vida, principalmente do tempo que passou no Brasil. Não podia faltar o episódio em que o seu batalhão, destinado a seguir para França, onde iria participar na primeira Grande Guerra, foi visitado pela Rainha D. Amélia, que ofereceu a cada soldado um par de meias de lã. Não foram utilizadas nessa circunstância porque o batalhão nunca chegou a ser convocado para partir.
Mas, vencendo um caminho ainda mais difícil, regressámos a casa, onde a nossa cesta de figos foi recebida com grande alvoroço e fez a delícia de grandes e pequenos.
Lisboa, 12 de Julho de 2012
Clementina Relvas