Meus queridos netos:
Há dias, percorrendo uma pequena feira do livro, houve um título que atraiu a minha atenção: “UMA VISITA A PORTUGAL EM 1866 – Hans Christian Andersen. Sim, sim, aquele escritor cujos contos embalaram as sestas da Cristininha, lidos por mim, em voz alta e depois, por ela própria, seduzida por aquelas fantasias, ora alegres ora melancólicas: O Polegarzinho, O Patinho Feio, O Soldadinho de Chumbo, A Pequena Sereia (que está representada por uma célebre estátua, à entrada do porto de Copenhaga) e muitos outros de igual beleza e renome. O Zezinho, que ainda só tem quatro anos, quando aprender a ler, certamente se interessará também por eles.
Mas voltemos ao assunto principal da minha carta: Portugal, em 1886, visto pelo grande escritor dinamarquês, cuja fama lhe valeu ser escolhido para patrono do Dia Internacional do Livro Infanto-Juvenil, que ocorre a 2 de Abril, data do seu nascimento, em Odense, em 1805.
Hans Christian Andersen conheceu, em Copenhaga, José e Jorge O’Neill, filhos do gerente comercial duma firma muito importante, a Torlades O’Neill de Lisboa e cônsul-geral da Dinamarca nesta cidade. Falando fluentemente dinamarquês, sueco, norueguês, alemão, inglês, francês, espanhol e português, quis que os filhos seguissem o seu exemplo, enviando-os primeiro para a Dinamarca, onde, durante quatro anos, conheceram o povo e a língua e, depois, para a Suécia, com idêntica finalidade. Foi durante a sua estadia em Copenhaga, em casa do Almirante Wulff, onde ficaram hospedados, que conheceram Andersen, visita habitual daquela família.
Passaram alguns anos sem terem notícias uns dos outros. Para apresentar um amigo que lho pedira, Andersen escreveu uma carta de recomendação a Jorge O’Neill que, com o falecimento do pai, herdara o cargo de cônsul da Dinamarca. Assim se reataram as relações que, não tardou muito, deram lugar a um caloroso convite para visitar Portugal (Andersen era muito viajado e já tinha estado em Espanha, que nessa primeira visita, sendo jovem, o impressionou favoravelmente) e hospedar-se em casa da família O’Neill, o que aceitou com muito agrado.
Como podem calcular, a viagem da Dinamarca até Portugal, nesse remoto ano de 1866, não era tarefa fácil. Passou pela Alemanha, Holanda e Bélgica, quedou-se um mês em Paris e partiu para Bordéus, onde devia apanhar um barco para Lisboa. Devido ao mau tempo no Golfo da Biscaia, o navio atrasou-se tanto e a viagem apresentava tão grandes perigos que Andersen resolveu fazer a viagem por terra. E, assim, partiu de comboio para Madrid, com uma paragem para rever a Catedral de Burgos, mas, em Espanha, tudo o desgostou. Diz ele: “Este país tão decantado não me dava agora o prazer que dele tirara da última vez. Logo ao entrar, encontrei muitos rostos sombrios e carrancudos. Em San Sebastián e em Burgos também, o pessoal do hotel era rude. Num barbeiro havia um circulo de homens de barba hirsuta e esfarrapados Tudo aí era desgostante, até mesmo os dedos do barbeiro a cheirar a alho”. A viagem continuou, com Andersen enregelado e incomodado com “o espesso fumo de maus charutos” que “empestava a carruagem”. Segundo confessa, “Na minha anterior visita, Madrid não me agradou e desta vez ainda menos. Senti-me mal disposto, deslocado e insatisfeito. Nem os quadros incomparáveis de Murillo e Velásquez conseguiram derramar luz em mim”. Como o troço de caminho de ferro que devia ligar Madrid a Lisboa, embora construído e inaugurado pelo rei, ainda não estava aberto ao público, a viagem teve de continuar numa pequena diligência “onde mal cabiam o cocheiro, o correio e dois passageiros”, por uma estrada quase intransitável, por planícies desoladas e ermas. E é assim que descreve a primeira paragem, em Talavera de la Reina: “Camponeses enxameavam já a praça do mercado, com longas capas em farripas e chapéu de aba larga que lhes dava a aparência de bandidos. Uma multidão ainda mais andrajosa de pedintes, homens e mulheres, cercou-nos diante da miserável estalagem, onde uma velha, de modo bem pouco apetecedor, nos preparou chocolate. Punham-nos literalmente as mãos em cima, puxavam-nos pelos braços e pelas pernas, para apanharem uns xelins de cobre. Era como se estivéssemos rodeados de pólipos esfarrapados”. Após uma curta paragem de uma hora, em Trujilho, para a primeira refeição quente de todo o dia, continuaram a tormentosa viagem até Mérida, onde chegaram, com a carruagem puxada por bois, cerca das quatro da madrugada e, enquanto lhes transportavam as bagagens para a estação, Andersen ainda tentou, com um companheiro de viagem, dar uma olhada às ruínas romanas da cidade mas, diz ele: “Sentia-me tão fatigado e tão pouco disposto a admirar relíquias da Antiguidade que, de mau grado e coxeando, com os olhos semi-cerrados de sono, mal vi as velhas pedras. Foi-me muito mais agradável ouvir a locomotiva resfolegar e ver o seu fumo rodopiar no ar”. E ei-los em Badajoz! “Finalmente, havia uma cidade a ver, a única verdadeiramente importante em todo o trajecto de Madrid”. Aí, repousou algumas horas até embarcar no comboio que o havia de trazer a Lisboa, onde chegaria, sempre por caminho–de ferro, na manhã do dia seguinte.
E agora, como já estamos na nossa terra, deixo para a próxima carta as impressões de Andersen sobre Portugal e despeço-me com muitos beijinhos, do Vôvô e meus… está claro.
Escultura de HANS CHRISTIAN ANDERSEN existente no Central Park da cidade de Nova Iorque (Fonte: Google)