Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sexta-feira, 20.05.11

 

            Meus queridos netos:     

 

               Apesar de, aparentemente, se tratar duma realidade banal, nas minhas recordações é aquela que se impõe com maior nitidez e me provoca emoções mais profundas.

 

             Até ao fim da Escola Primária, só ocasionalmente ali ia acompanhar a minha Mãe e deleitar-me com o cheiro dos manjericos e outras flores que debruavam os talhões. Mas, se caía um grande nevão, a horta transformava-se num sítio mágico: eu imaginava inúmeros seres, pequenos e ladinos, a recolherem-se no poço da mina escavado na rocha e invisíveis aos olhos do meu Pai que ali tinha de se deslocar, com mais frio do que esforço, para trazer as grandes tronchudas que logo se transformavam na deliciosa sopa com batata e feijão, de todos os dias. Uma vez por outra, alegravam a grande travessa de bacalhau com todos que quase fazia ser novamente Natal, data em que nunca faltava, então acompanhado pelo polvo e pelas filhós.

 

            Quando vim estudar para Lisboa e dada a dificuldade e carestia dos transportes, só regressava a casa nas férias grandes e, então sim, ir regar a horta era uma regalia que raramente dispensava.

 

            Não ficava longe da nossa casa e o caminho, embora a subir, proporcionava uma ampla panorâmica: avistava-se, para lá do rio Távora escondido pelas altas montanhas de Chavães, a vila de Tabuaço, cujas vidraças batidas pelo sol quase poente, despediam raios coloridos que nos turvavam o olhar e, lá muito ao longe, as cumeadas do Marão, não verdes como na realidade mas azuis, quase negras, pela distância.

 

            A pequena horta era formada por dois talhões ligeiramente desnivelados: no verão, um era todo verde, plantado de feijoeiros, cebolas, alhos e, quando o meu Pai nos queria fazer uma surpresa, de algumas cenouras que, só depois de arrancadas, exibiam o seu colorido; no outro, predominava o vermelho dos tomates e dos grandes pimentos suculentos.

 

            A horta tinha sido uma herança dividida por três irmãos e a mina ficava na nossa parte, pelo que tínhamos direito a três dias de rega, enquanto para os outros dois herdeiros, só ficavam os restantes quatro dias. Tudo devidamente espaçado, para poupar as pobres plantas. Além disso, todos podiam abastecer-se de água para as suas necessidades, direito que não era muito utilizado, dada a dificuldade do transporte.

 

                E eu? Qual era a minha função e o meu fascínio? Abrir o bueiro da mina e, com um pequeno sacho, encaminhar a água pelos regos, provendo, rigorosamente, a sua distribuição pelos dois talhões? Claro. Mas o fundamental e mais presente na minha memória, era o gorgolejar da água ao ser absorvida pela terra sequiosa e, pouco tempo depois, ver todas as plantas erguerem-se numa verdadeira ressurreição.

 

            Hoje vivo na cidade, rodeada de asfalto e ouço falar nas hortas municipais que, nos arredores, ajudam a mitigar a crise e as saudades daqueles que, como eu, tiveram, no campo, uma pequena horta.  

 

                                                Lisboa, 4 de Maio de 2011

 

                                                   Clementina Relvas

                                                     Exemplo de uma horta urbana

https://blogs.sapo.pt/editjournal.bml?usejournal=torrente-de-emocoes&itemid=68116#tab0-773061

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publicado por clay às 00:35 | link do post | comentar | favorito
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