Todos os meus amigos conhecem os grandes prazeres que me enfeitam a vida: viajar (e muito mundo eu corri), ler e comunicar. Ora, há algum tempo, porque estou mais velha e tropeçona e devido a problemas de saúde, só tenho podido usufruir dos dois últimos.
Com a morte do nosso Nobel da Literatura, José Saramago, cuja obra sempre me cativou desde o Levantado do Chão, resolvi ler a Viagem do Elefante, livro que o meu marido me ofereceu e me proporcionou momentos de grande interesse e até de boa disposição. De facto, mais do que as histórias que inventa, aprecio neste autor a maneira como trata a língua portuguesa, buscando para o seu vastíssimo vocabulário sentidos absolutamente inesperados e, quando se justifica, cheios de humor.
E vem esta singela homenagem a propósito de quê? Não sei se muito a propósito, porque a leitura que eu levara para ocupar o tempo no Hospital não era outro livro de Saramago que ando a reler, mas uma revista semanal de, digamos, entretenimento.
Pois o exame que eu ia fazer, o misterioso exame designado pela sigla inglesa PET que, vim depois a saber, lido ao contrário como deve ser, significa “Tomografia de Electrões e Positrões", isto é, uma aplicação do temível nuclear aqui para fins pacíficos, exigia duas longas horas de repouso nos confortáveis cadeirões do IPO de Lisboa, com ar condicionado, o agasalho duma manta e a solicitude do pessoal, sempre disposto a vir em nossa ajuda. Diga-se, entre parêntesis mesmo se a eles não recorro, que comecei por me perder em divagações sobre a felicidade de ter nascido nesta parte do mundo, já que, em muitas outras, as pessoas doentes são abandonadas à sua sorte, sem poderem recorrer a hospitais nem a remédios, muitas vezes nem a uma simples aspirina quanto mais a estes sofisticados exames.
Depois, achei que o melhor era pôr-me a ler a revista que tinha levado exactamente para me distrair. Mas estava eu muito enfronhada em notícias e vidas singulares, tidas por dignas de serem contadas, quando a Técnica que me iria fazer o exame me advertiu, em tom ligeiro mas com muita firmeza:
- Leituras aqui? Não pode ser. Bracinhos para baixo e toca a descontrair.
Larguei e revista e procurei relaxar, continuando com os pensamentos que já referi e algumas orações de graças a Deus. Decorrida mais duma hora, passaram-me para a sala ao lado, indo ocupar o lugar, igualmente confortável, deixado vago por outro doente em fase mais adiantada do tratamento. Mas ainda me restou companhia: um senhor de meia-idade, agricultor para as bandas de Torres Vedras e que começou logo a falar-me dos deliciosos figos comidos três dias antes, no imenso pomar de pessegueiros onde, agora, os frutos maduros precisavam de ser colhidos e eram, também, embora de maçãs se não tratasse, fruto proibido para um diabético como ele.
Eu, que fui criada no campo, achava-me, não nas minhas sete quintas, mas nos meus pequenos pomares, esses sobretudo de cerejeiras. Ia animada a conversa, com matança de porco e tudo, quando a Técnica passa de novo e corta cerce:
- Os senhores não podem conversar. Têm de ter os músculos bem distendidos para que o exame resulte.
Para o meu companheiro não foi difícil obedecer, porque foi logo chamado para o exame. E para mim também não, porque me vi sozinha a completar o meu período de repouso. E sem interlocutores…
O exame, demorado mas indolor, correu bem e, quando acabou, a Técnica, desta vez, deu-me uma boa notícia:
- Tem lá fora um chá e umas bolachinhas para quebrar o seu jejum. Eu já volto para lhe tirar o catéter.
Quando me veio buscar, o meu marido ficou agradavelmente surpreendido com a minha boa disposição, resultante das peripécias que acabo de relatar e, principalmente, da excelência dos serviços que me foram oferecidos, porque Deus, não sei porquê, me destinou a viver neste mundo desenvolvido e rico, de que tanto nos queixamos.
Lisboa, 1 de Julho de 2010·
Clementina Relvas