Meus queridos netos:
Só agora que, devido a várias complicações de saúde multiplicadas com a idade, me vejo inibida de fazer tantas coisas que dantes me enchiam os dias e a vida, é que reconheço a verdade contida num célebre verso de Camões: "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades".
Não leio com tanta avidez e prazer, não me atraem como atraíam os bons programas de Televisão, nem sequer o convívio com as amigas, quase todas com a minha avançada idade e os respetivos achaques.
Com a mobilidade diminuída por dores e desequilíbrio, raramente saio à rua e sempre de carro e amparada ao Vôvô, que tem sido o meu Anjo da Guarda aqui na Terra.
Eu, que tanto viajei pelo mundo, fascinada pelas muitas maravilhas que Deus espalhou por toda a parte com a Sua generosidade, passei este ano as duas primeiras semanas de Agosto, o mês de férias da minha empregada, muito bem instalada em duas unidades hoteleiras do INATEL, recentes e acolhedoras.
Nesta época que estamos a atravessar, com o país em crise profunda e tantos desempregados, alguns tendo atingido já o limite da sobrevivência ameaçada, eu dava e dou graças a Deus pela minha situação privilegiada, procurando partilhar os meus recursos, reduzidos pelas leis, principalmente com familiares doentes ou desempregados.
Com o coração aflito mas procurando manter limpos os olhos para tanta beleza, mesmo sem sair de casa ou em pequenos passeios de carro, bastava uma verde e frondosa árvore ou uma viçosa flor, para o meu coração se refugiar nas lembranças passadas em que nunca me poupava a esforços para usufruir de todas as maravilhas ao meu alcance, que fui acumulando em fotografias e, a maior parte delas, no recôndito do meu coração.
Disse: mesmo sem sair de casa. O hotel onde o Vôvô e eu passámos a primeira semana, era um antigo solar brasonado, na encantadora aldeia de Linhares da Beira, restaurado com todo o esmero, o que lhe acrescentou a comodidade e a beleza. O nosso quarto, como outros mais, tinha acesso direto a um autêntico parque por uma porta que obrigava a vencer uma alta base de granito, que eu só conseguia fazer com a ajuda do Vôvô . Mas, ultrapassado esse obstáculo, era o paraíso: um espaço privativo, com uma mesa e duas cadeiras, para ler ou descansar gozando a inesquecível vista da Serra da Estrela, relvados com sombras para mudar a perspetiva, roseiras em flor, aloendros brancos e vermelhos era o que podíamos ver e desfrutar numa metade do parque; a outra metade era ocupada por uma imensa pérgula ovalada, erguida sobre fortes barras de aço saídas dum contínuo renque de opulentas hortenses ostentando flores enormes, de cores tão variadas e opulentas como eu, que conheço os Açores de ponta a ponta, penso jamais ter visto. A pérgula estava a ser recoberta por hera (a sua construção era recente) e o chão, com a parte central relvada e dois caminhos laterais de xisto, convidativos a pequenos passeios, eram protegidos por muros que permitiam, neles encostados, ver uma parte da vila, o seu bem preservado castelo, os campos agrícolas e, bem lá ao fundo, a já referida panorâmica da Serra da Estrela.
Era um refúgio privilegiado, onde todas as dores e preocupações se atenuavam. E havia quatro espaços igualmente cuidados, no mais baixo dos quais se situavam as piscinas, mas a que o acesso, feito por antigas escadarias exteriores, me privavam de frequentar e de me deliciar com as brincadeiras e "chalrices" de crianças e bébés. Então, ocupava-me o espírito com os tempos em que o mar e a praia, para mim, que nasci em Trás-os-Montes, eram uma verdadeira dádiva de Deus.
Apesar de "limitada", muito tenho ainda para vos contar, o que farei em breve. Como gostaria de vos ter então (e agora) junto de mim!
Beijinhos, muitos, da Vóvó e do Vôvô
Clementina
Lisboa, 13 de Setembro de 2012