Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Segunda-feira, 25.02.08


Meus queridos netos:

Quando cheguei a Luanda, e apesar do caloroso acolhimento que recebemos da família aí residente, especialmente do meu irmão Alfredo, foram muitas e desencontradas as emoções que senti: achei a cidade lindíssima, com a sua imensa baía, a restinga que a separava do Oceano Atlântico e onde se passavam muitos tempos de lazer, quer nas esplanadas e restaurantes ou para e simplesmente contemplando o mar. Apaixonei-me logo pelas palmeiras, araucárias e casuarinas e, na época própria, pelas acácias rubras que cresciam

 

 

 

espontaneamente um pouco por toda a parte e em particular na encosta da Fortaleza. Apaixonei-me pelas vendedeiras de abacaxi, que quase todos os dias passavam à minha porta, carregando à cabeça as enormes quindas com fruta e, nas costas ou na anca, o último filho que amamentava, com toda a naturalidade, na altura de o fazer. Apaixonei-me por aquele povo ainda tão atrasado mas bem disposto, prestável e contentando-se com tão pouco: um emprego como contínuo num serviço público era já a sorte grande. A maioria, especialmente os homens, eram empregados domésticos, pescadores ou viviam de pequenos biscates.

A minha primeira impressão do Liceu foi muito negativa: eram raros os alunos negros e nenhum nos últimos anos, os que me coube leccionar. Não é que houvesse discriminação a nível da entrada, mas a maior parte das famílias vivia em tal estado de pobreza que toda a sua energia era gasta no esforço de sobreviver.

Pouco a pouco foram sendo criadas Escolas Técnicas que, essas sim, tinham uma grande população de alunos de cor, como se dizia para designar pretos e mestiços. A afluência tornou-se maior à medida que se expandiu, por todo o território, o programa «Levar a Escola à Sanzala», criado pelo Secretário Provincial, Dr. Pinheiro da Silva. E a rede de ensino ficou, pelo menos teoricamente, concluída com a criação, já quase no fim da permanência portuguesa, com a criação da
Universidade de Luanda.

Estas desigualdades sociais não auguravam nada de bom mas não foram o único ingrediente para a crise. Na Conferência de Berlim de 1885, já referida, traçaram-se em África fronteiras artificiais, no papel, sem atender às várias etnias existentes, que foram integradas noutras, ou amputadas duma parte do seu solo e da sua identidade. Foi talvez esta a verdadeira génese da luta dos angolanos contra o colonizador, nós, os portugueses. Nos anos que precederam a guerra, tinham-se arreigando três movimentos de libertação: um, no Norte, da etnia quicongo, a F.N.L.A. (Frente Nacional para a Libertação de Angola), outro, no centro, os quimbundos que adoptaram a sigla M.P.L.A. (Movimento para a Libertação de Angola) e ainda outro, maioritariamente formada por umbumdus, no centro-leste, a U.N.I.T.A. (União Nacional para a Independência Total de Angola), movimento este fundado em 1966, por dissidentes da
FNLA e do GRAE - Governo de Resistência de Angola no Exílio.

Todos estes movimentos eram encabeçados por angolanos que tinham ido estudar para o exterior, muitos, como Agostinho Neto, dirigente do M.P.L.A. e alguns dos seus seguidores, para Lisboa, onde a Casa dos Estudantes do Império se tornou, em breve, um alfobre de revolucionários.

É claro que a febre das independências andava no ar: Argélia, Congo Belga já se tinham libertado das respectivas potências colonizadoras mas nós, principalmente os que optaram por viver nas então chamadas províncias ultramarinas, em geral pouco ou nada politizados, fazíamos uma vida normal, como se aquela fosse e assim era apregoado pelos altos dirigentes da Nação, a nossa terra, que se estendia do Minho a Timor.

De repente, tudo se estilhaçou: a F.N.L.A. atacou inesperadamente a Norte, usando duma barbaridade que semeou o pânico por toda a Angola e foi repelida por barbaridade semelhante. Esta situação levou o Governo português a enviar para o Ultramar, «Imediatamente e em força» nas palavras de Oliveira Salazar, grandes contingentes de tropas.

Mas em breve se foram manifestando outros focos de guerrilha, com o M.P.L.A., que ia exercendo a sua hegemonia no Centro, o F.N.L.A., comandado, a partir do Congo ex-Belga, por Holden Roberto intensificando a guerrilha no Norte e a U.N.I.T.A., às ordens de Jonas Savimbi, instalando-se no Leste e avançando posteriormente até à cidade do Huambo, a antiga Nova Lisboa.

Contra a opinião do Governo, que teimava em ignorar repetidas determinações das próprias Nações Unidas, muitos portugueses, especialmente militares, clamavam por negociações na esperança de obter um estatuto de autonomia, ou se tal já não fosse possível, conceder a independência aos países em guerra, que entretanto, já alastrara às restantes províncias ultramarinas, sendo particularmente dura na Guiné-Bissau. Foi o que veio a suceder logo a seguir ao 25 de Abril de l974 que culminou, em Portugal, com a tomada do poder pelos militares e o abandono, puro e simples, das populações brancas à sanha dos chamados «terroristas». As nossas tropas, em Angola, caíram na total indisciplina: militares portugueses vi eu que, estando de guarda ao Palácio do Governador, se sentavam à sombra da guarita, com a metralhadora em bandoleira, a fingir de guitarra.

Certamente vos ocorrerá a pergunta como lidei eu e a restante família com tão conturbada situação: em 1961, embora os ataques se tivessem limitado ao Norte e nós vivêssemos na Caála, a vinte quilómetros de Nova Lisboa, os boatos proliferavam por toda a parte, fazendo-nos crer que a toda a hora estava iminente um ataque do inimigo, o que nunca aconteceu nos distritos do Centro. Ainda não tinham chegado as tropas portuguesas e as poucas existentes, sem treino e mal municiadas, eram coadjuvadas por autoridades administrativas e pela totalidade dos habitantes brancos, que se revezavam nas rondas nocturnas. As mulheres começaram por fazer treino de tiro – eu tinha uma pistola à cabeceira apenas para poder dar o alarme se algo nos ameaçasse – mas o que nos deixava a todos um pouco mais tranquilos eram os abrigos improvisados em que nos acolhíamos em noites de alarme: os silos do milho, o primeiro andar do Banco, a escola primária, onde alguns homens armados ficavam para nos protegerem.

Pouco mais dum ano depois, mudámo-nos para Luanda, onde vivemos vários anos longe da guerra, mas sempre angustiados com os ecos que nos chegavam das lutas a desenrolarem-se sobretudo nas zonas de fronteira onde morria muita gente, de ambos os lados.

Mas foi só depois do 25 de Abril, quando os Movimentos foram autorizados a instalarem-se um pouco por toda a parte, que começou, para nós, o verdadeiro pânico.

Eu continuei a dar aulas no Liceu Salvador Correia onde, apesar das R.G.A’s e muita propaganda, fui sempre tratada com respeito por todos. Continuei até o Liceu fechar, no fim do segundo período, o que obrigou o Tio Zé a vir para casa dos Avós, em Portalegre, e assim poder terminar o 5º ano do Liceu. O Quim que precisava de fazer uma pausa dum ano, continuou connosco.

Uma vez encerrado o Liceu, foi-nos autorizado continuar o trabalho com os nossos estagiários, que, sem este, não poderiam concorrer a um lugar de professor efectivo em Portugal. Nesse período, ainda fiz parte dum grupo de trabalho que o Ministro da Educação, um membro da U.N.I.T.A., encarregou de criar um Instituto de Investigação Pedagógica, que ignoro se chegou a bom porto.

Nesse período, nós morávamos numa moradia com jardim no chamado Bairro de Alvalade, mas tivemos a pouca sorte de, na nossa rua, se terem instalado duas facções rivais – que começaram logo a guerrear-se. O fogo cruzava-se por cima das nossas cabeças, obrigando-nos a quase rastejar para entrarmos em casa. Uma bala perdida foi parar à cama vazia do Quim que, durante algum tempo, ainda a usou como amuleto. E tinha razão para isso pois, muito perto da nossa casa, uma menina, estudante de Medicina, foi atingida mortalmente, num quarto andar, quando jantava com os seus Pais.

Embora tivéssemos passagens para regressarmos juntos, creio que no princípio de Agosto de 1975, acabámos por regressar a Portugal, um de cada vez, sendo os últimos o Vôvô e o Quim, que ainda lá assistiram ao casamento da prima Tininha e passaram alguns fortes sustos. Conta o Vôvô, que foi o padrinho de casamento da vossa prima, que sentia a mão da noiva tremer no braço dele, pois por ali bem perto havia tiroteio bem forte, ouvindo-se o matraquear das metralhadoras.

Do que foram os nossos primeiros tempos de «retornados», como alguns, com certo desprezo, nos chamavam, falarei numa próxima carta.

Beijinhos e até breve.

 

tags: ,
publicado por clay às 17:34 | link do post | comentar | ver comentários (4) | favorito
Terça-feira, 20.11.07
 

            Meus queridos netos:

 

         Nunca na minha vida fiz nada extraordinário. Mas, nas tarefas da vida quotidiana espero, com a ajuda de Deus, ter posto todo o empenho e dedicação de que fui capaz e penso tê-las levado a bom termo.

 

         Assim sucedeu nos meus estudos, de que já vos falei noutra carta, como no aperfeiçoamento da minha vida profissional, às vezes com bastante sacrifício como vereis.

 

         Quando acabei o curso da Faculdade, a melhor entre quarenta, dois caminhos se abriam à minha frente: aguardar que vagasse um lugar para professora assistente, conforme me tinha prometido o meu saudoso Professor Doutor Jacinto do Prado Coelho ou fazer o estágio pedagógico para seguir a carreira docente, minha primeira aspiração.

 

         Já sabem que a primeira via se mostrou sempre inacessível para mim, sobretudo porque decidi casar e ir viver com o Vôvô para Angola e aí constituir família.

 

         Quanto ao estágio, nessa altura, era extremamente difícil, não só o ser admitida como os dois anos em que tínhamos de trabalhar numa Escola, sem qualquer remuneração o que, desde logo, me afastava dessa hipótese que não garantia a minha subsistência e seria demasiado difícil para os meus Pais sustentar-me.

 

         Além disso, só havia dois centros de estágio: um em Lisboa e outro em Coimbra, cada um deles com apenas duas vagas. Os exames de admissão eram muito difíceis e tinham a agravante de, ainda que tivéssemos nota positiva ou mesmo boa, se a dos outros concorrentes fosse superior à nossa, só o melhor é que entrava e ao segundo de nada lhe valia o exame pois, além de não ser admitido na única vaga que havia, teria de repetir o exame até conseguir ser o melhor.

 

            Para o que tinha sorte de entrar, ficava durante dois anos lectivos a dar aulas, quer sob a orientação dum professor categorizado e com muita prática, quer como único responsável de algumas turmas, mas sempre sujeito à intervenção do metodólogo que assistia à aula e fazia as suas críticas. Uma vez feito o estágio com êxito, era-lhe conferida a categoria de professor agregado, que, embora parcamente remunerado, nada recebia durante as férias grandes e, em certos grupos, eternizava-se nessa situação por muitos anos.

 

         Ora, como no ano anterior em que eu devia candidatar-me ao estágio vi a melhor aluna desse ano, que tinha concluído a Faculdade com dezassete valores, como eu, ter tido doze no exame de admissão e ser suplantada por outra colega que teve catorze valores, senti-me completamente desmoralizada para me arriscar nessa aventura, tão difícil de todos os pontos de vista.

 

         Fui então dar aulas para o Liceu Antero de Quental, em S. Miguel e ali fiquei um ano maravilhoso de que já vos fiz um relato entusiasta. Depois vim para Lisboa, para o Liceu Maria Amália, durante três anos, até me casar com o Vôvô, em 1958 e ter ido para Angola. Das vicissitudes que lá passei e também das alegrias – já têm notícia.

 

         Quando fui para Luanda, como professora do Liceu Salvador Correia, sempre me distribuíram turmas do terceiro ciclo, que me davam muito trabalho a preparar até ficarem a meu gosto: rigorosas nos conteúdos e motivadoras na forma para os alunos. Nem sempre o devo ter conseguido, mas posso dizer que era uma professora respeitada e apreciada por todos.

 

         A dada altura fui convidada para exercer um cargo na Mocidade Portuguesa Feminina e a minha primeira resposta ao convite foi não, porque eu nunca tinha tido da M.P. mais do que um pin com um número e quando, ao terminar o Liceu com uma média que ultrapassava em muito os catorze valores exigidos para ser admitida num Lar da Organização, foi-me dada uma resposta rotundamente negativa, com a alegação de que eu não era filiada na M.P.

 

         Dito não, fui para casa a pensar se esta não seria uma vingança mesquinha, e dei o dito por não dito, até porque me interessava muito o trabalho com as raparigas angolanas pobres que na Casa de Trabalho da M.P.F. em Luanda, aprendiam a cozinhar, a tratar dos seus bebés, a costurar, etc. Esse já era um acréscimo de trabalho extenuante e que, além de não ser remunerado, até me saía caro porque tinha de pagar do meu bolso a gasolina para as deslocações. Tais funções também me obrigavam a deslocar-me frequentemente de avião pelo extenso território angolano para supervisionar os Lares distritais e, com as habituais aulas do Liceu, o meu sacrifício aumentou e a minha saúde estava à beira do colapso. É preciso não esquecer que, entretanto, eu tinha tido um filho que morreu à nascença, os meus dois filhos Zé António e Joaquim Manuel e ainda um aborto acidental de quatro meses, penso que motivado por grandes aflições devido a uma doença mental de minha Mãe que vivia connosco em Luanda, por essa altura.

 

         Embora procurasse dar toda a atenção aos meus dois filhos, cuidando deles, ajudando-os nos estudos e levando-os connosco em passeios e viagens, ao cinema, às aulas de natação, valeu-me de muito ter uma empregada, a Luísa, que foi o meu braço direito em relação a eles.

 

         Entretanto, foi promulgada uma lei que abria o estágio para cerca de trezentas vagas e num regime muito mais facilitado. Para o fazer, como era meu grande desejo, tive de vir sozinha para Lisboa e fui dar aulas para o Liceu Pedro Nunes. Alojei-me na Casa de Santa Zita, que era perto, mas doía-me a alma por estar longe dos meus filhos e marido. Até que a corda rebentou: eu chorava a todo o momento, tive de abandonar as aulas e fui fazer uma cura de sono em Belas, onde tive a sorte de encontrar um médico sabedor e paternal, que levou a sua abnegação a tratar-me de Lisboa, por correspondência, durante o tempo todo do meu estágio. Do meu estágio? Sim, eu não fui capaz de continuar em Lisboa, mas, entretanto, tinha sido aberto o estágio em Luanda e, com muito apoio do Vôvô, decidi levar ao fim essa tarefa, sem o êxito do qual ficaria para sempre frustrada. Foi um esforço enorme: quando a maioria das minhas colegas o acabavam arrasadas por um esgotamento nervoso, eu comecei-o já doente e a tomar um punhado de remédios que o médico de Belas ia controlando à distância.

 

         E assim, ajudada pelo Vôvô que me passava todos os meus trabalhos à máquina e me levava ao fim da tarde, com os filhos, até à ponta da Ilha de Luanda onde recuperava paz e força para continuar, lá concluí o meu estágio com a melhor nota dos oito concorrentes e fui logo convidada para Metodóloga de Francês. Para poupar um pouco a saúde, recusei terminantemente acumular essas funções com o lugar na M.P.F. que, tendo ficado à minha espera, nunca voltou a ser preenchido.

 

         Mal acabei o estágio vim com o Vôvô e os dois filhos passar férias a Portugal. Aconteceu então que, dado a minha saúde não me permitir instalar-me em Portalegre para ajudar a Bisavó na tarefa de tomar conta dos rapazes, e para que não perdessem o ano, resolvemos inscrevê-los no Colégio de Tondela, de que tínhamos muito boas referências e onde o Quim fez a quarta classe e o Zé o primeiro ano do ciclo. Durante os seis meses que estiveram no Colégio, nós íamos, mais do que uma vez por mês, visitá-los e levar-lhes mimos e, nas férias da Páscoa, como já contei numa carta anterior, demos praticamente com eles a volta a Portugal e à Galiza. Só nessas férias, o nosso carro novo fez mais de dezoito mil quilómetros.

 

         Embora me tenha custado muito esta separação, olhando para as circunstâncias e para dentro de mim, não acho que tenha sido egoísta. Tanto o Vôvô como eu, fizemos o que nos pareceu ser melhor para todos: para eles que não perdiam o ano, para os seus Avós que já não estavam em idade de ter tanta balbúrdia em sua casa e para mim, que assim pude recuperar as minhas forças e ir retomar, em Luanda, o meu lugar de Metodóloga, que desempenhei até ao fim do ano lectivo de 1976, quando os meus estagiários ficaram com as habilitações que lhes permitiram concorrer a professores efectivos em Portugal, para onde todos viemos, fugindo dos horrores da guerra.

 

Até breve. Beijinhos da Vóvó.

 

publicado por clay às 16:35 | link do post | comentar | favorito
Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Junho 2015
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
últ. comentários
O Livro e o autorSugere-se a análise do Livro: “Da...
Venha conhecer o nosso cantinho da escrita... Visi...
Querida Professora Acabei de ler o comentário da m...
Cara Drª Clementina Relvas,Vim hoje visitar o seu ...
Querida Vovó... ou Querida Professora:Para quem cu...
Querida Professora ,Estive uns tempos sem vir ao s...
Cara Sandra:É sempre um grande prazer e compensaçã...
Olá Cristina,tive o prazer de conhecer a su...
Dra Clementina :Fiquei feliz por receber uma respo...
Lisboa, 20 de Maio de 2011Peço desculpa de só agor...
Posts mais comentados
mais sobre mim
blogs SAPO
subscrever feeds