Meus queridos netos:
O forno do povo, era, na pequena aldeia da minha infância, um dos poucos vestígios da antiga vida comunitária. Lembro-me dele aos dez anos, mais adiante direi porquê. E só me parece que ainda respiro, deliciada, primeiro o perfume acre e tão especial das estevas (no Alentejo aprendi a dizer “xaras”) a consumirem-se em altas labaredas vermelhas ou dos ramos de vide que resultavam da poda e que também eram muito apreciados para aquecer o forno; depois, quando se tirava cá para fora, o cheirinho apetitoso do pão de centeio que nos ia regalar durante toda a semana.
O forno funcionava assim: havia uma mulher de meia-idade que se encarregava de, com a lenha trazida pelos interessados, acender o forno, deixá-lo aquecer até atingir a temperatura adequada, enquanto remexia sabiamente o lume, para que o aquecimento atingisse toda a superfície. Chegada a esse ponto, varria, com uma comprida vassoura de ramas, o lar do forno, libertando-o de toda a cinza, para que o pão saísse sem qualquer mácula. Pegava então numa comprida pá (que eu acreditava firmemente ser igual à da padeira de Aljubarrota que, na escola primária nos enchia de orgulho por, com ela, ter conseguido derrotar os espanhóis), onde colocava, um a um, os pães do tabuleiro que tinha sido o primeiro a chegar. Cada mulher marcava o seu pão com um sinal combinado com as outras: uma cabeça feita com um forte repuxão na massa, uma cruz bem profunda para que não desaparecesse com a cozedura ou um raminho de carqueja, que saía lá de dentro carbonizado mas sempre no seu posto, ufano da missão tão bem cumprida.
Enquanto tudo isto se passava e, principalmente, terminada a azáfama, enquanto se aguardava, com toda a calma, a abertura do forno, a meia dúzia de mulheres ali reunidas tagarelavam, tagarelavam, desfolhando as vicissitudes das suas vidas e também, vamos lá, alguns “segredos” das do próximo: era então que se sabia quem estava prestes a ter mais um filho, quem namorava quem, a chegada mais ou menos remota dos parentes que trabalhavam nos hospitais do Porto como enfermeiras ou, mais frequentemente, simples auxiliares. Nesse tempo ainda se falava da emigração do século XIX para o Brasil, que, quando bem sucedida, trazia à terra respectiva os «brasileiros de torna-viagem», os quais, além de obras de beneficência, erguiam as suas casas tão imponentes, com dois andares, muitas vezes um mirante e um telhado com rebordo de madeira mais ou menos artisticamente trabalhado. Da minha aldeia também alguns tinham vivido essa aventura, entre eles os meus Avós maternos e o meu Pai mas, infelizmente, pouco tinham amealhado nessas terras longínquas e muitas vezes madrastas. Mas ainda estava longe a emigração em massa para França e para o Ultramar.
E chegava o momento tão ansiado, principalmente pelas crianças, que também acorriam ao forno do povo, principalmente no Inverno, quando, cá fora, o “barbeiro” a soprar do Marão, enregelava as mãos e as enchia de frieiras: o pão era retirado um a um, primeiro os que tinham entrado mais tarde, pois tinham ficado mais perto da «boca» do forno e depois os outros, o que fazia sempre dizer à padeira: «Vêem, como lá diz o Senhor Prior: Os últimos são os primeiros». Enchiam-se os tabuleiros, guarnecidos com as suas toalhas brancas de neve e sentia-se a felicidade simples daquela gente, ciente de que o pão lhe duraria até à próxima semana, em que todo este ritual se repetiria, imutável.
De cada tabuleiro saía um pão para a padeira (a sua única paga) e, em alguns casos, os pãezinhos das crianças. A minha Mãe fazia sempre, para cada um dos filhos, com a massa temperada com azeite, o que lhe dava um gostinho especial, pequenos pães em forma de lagartos, peixes, bonecas, tudo o que a sua fértil imaginação inventava e a ternura das suas mãos moldava amorosamente para nós.
Como esta carta já vai longa, fica para a próxima a explicação prometida atrás, da relação entre os meus dez anos e o forno do povo…
Beijinhos, acabados de sair do forno do meu coração, da Vóvó. E do Vôvô também.
NOTA: Procurem no Arquivo ao lado "Maio 2007" e releiam o meu post "AS VOLTAS QUE LEVA O PÃO" no qual relato uma visita que fiz ao Museu do Pão em Seia.