Conheci-a por intermédio do seu Pai, quando andava na Faculdade de Letras. Tínhamos ganho, cada uma de nós, uma bolsa de estudo para a Universidade de Poitiers, por nos termos distinguido, a M…. no primeiro ano e eu no segundo, na disciplina de Francês. Ora, filha única e muito acarinhada, os Pais receavam deixá-la partir para um mundo desconhecido e viram em mim, um pouco mais velha, a companhia e suporte de que talvez viesse a necessitar.
E lá partimos as duas, no Sud-Express, a caminho de Pau, onde funcionava, no Liceu Henri IV, a Universidade de Verão, onde iríamos aperfeiçoar os nossos conhecimentos daquela língua estrangeira.
A cidade era pacata e lindíssima e ali nos reunimos a mais algumas colegas, uma das quais, a Maridith, ali se encontrava com os Pais, pessoas cultas e amáveis, sempre preocupados connosco.
Ficámos ambas instaladas, cada uma em seu quarto, numa casa particular, indicada pelos serviços universitários e de que era proprietária uma simpática senhora, parente já afastada do poeta Péguy, que ainda chorava a sua morte prematura na já longínqua Primeira Guerra Mundial, na Batalha do Marne. Tomávamos o pequeno-almoço com ela e as restantes refeições, geralmente demasiado frugais, dadas as restrições da Segunda Guerra, no refeitório do Liceu Henri IV. Era também numa das suas salas que todos, de diferentes países, nos juntávamos para conviver e dar o nosso passo de dança. Tínhamos um jornal semanal, a que tinham dado o nome de «Pot Pourri», com informações úteis, pequenos artigos culturais e, como o nome fazia supor, alguns apontamentos humorísticos.
As aulas, ministradas por professores competentes, eram complementadas com várias e interessantes visitas de estudo: ao Santuário de Lourdes, às grutas de Bétharram, aos cumes nevados do Col d’Aubisque, à preciosa igreja gótica de Poitiers, com os seus maravilhosos vitrais e estatuária e a outros locais de interesse.
Ora, para praticarmos o francês e não sermos tentadas pela comodidade da língua materna, combinámos que, durante esses passeios, ficaríamos sentadas junto de algum dos muitos estrangeiros que frequentavam o curso. Claro que, à excepção dum holandês e dum numeroso grupo de professores do ensino primário, oriundos da Argélia, quase todos se exprimiam com menos rigor do que nós, portugueses.
Além dessa característica, éramos também extrovertidas e alegres, pelo que nos não foi difícil a integração em grupo tão heteróclito. Éramos muito solicitadas e todas arranjámos correspondentes pelo tempo que duram estas amizades.
Mas a M…. Bem, a M… que, no último dia, se tinha sentado ao lado dum professor argelino, elegante e tão bonito que, na linguagem das jovens da época, todas considerávamos um «pêssego», tinha-se comprometido a manter com ele uma correspondência que, em breve tomaria uma feição amorosa. Ele gostaria de se ter casado na Páscoa seguinte, mas uma doença inesperada fê-lo adiar o casamento por algum tempo. Entretanto, eu ia pondo de sobreaviso a minha amiga: «Que não conhecia o rapaz nem a respectiva família, que até podia ser casado, para já não falar das mudanças radicais a que a sua vida iria ser submetida».
E eis senão quando, naquele Verão, o G… visita Lisboa com vários familiares e se instalam todos num hotel, donde várias vezes partimos os três em pequenas saídas turísticas, de que recordo, com saudade, um passeio à capelinha de Monsanto, um jantar no Ginjal e outros momentos igualmente prazerosos.
O casamento realizou-se em Algés, numa cerimónia íntima para família e amigos próximos, onde tudo era ofuscada pela beleza dos noivos. Não sem alguma angústia dos Pais, que iam ver partir a filha para longe, não só no espaço como no ambiente familiar e social dum país, a Argélia, onde as convulsões que levariam à independência já começavam a fazer-se sentir. Ainda foram visitá-los algumas vezes mas, em breve, eles tiveram de regressar a França, tendo-se instalado nos Pirinéus, onde o romance começara.
Não posso escapar a um hiato nesta minha narrativa, pois, pouco tempo depois, também eu casava, partia para Angola e as nossas relações perderam muito da intimidade e partilha da juventude. Mesmo assim, fui a Madrinha da filha mais velha – outra haveria ainda de nascer – e, passados sete anos em que, pela primeira vez regressei a Lisboa, em gozo de férias e também já com dois filhos, reatámos o convívio, agora enriquecido pelos dois maridos que logo ficaram amigos. Levámo-los a conhecer o belíssimo triângulo turístico da Serra de S. Mamede (Portalegre, Marvão e Castelo de Vide) e quando, também nós, tivemos de regressar de Angola devido à descolonização, víamo-nos sempre no Verão e festejávamos juntos, num grupo de familiares e amigos, o aniversário da M…, que ocorre no mês de Agosto e é sempre celebrado com um acróstico de parabéns da autoria do Marido.
Também nós fomos, por mais do que uma vez, visitá-los a Bayonne e demos, com eles, fascinantes passeios pelos Pirinéus.
Eu sempre mantivera a amizade dos seus Pais, de cuja casa parti, com eles, para o meu casamento em Fátima e que me consideravam como uma segunda filha.
Mas como contar tudo o que aconteceu? Os filhos cresceram, deram-nos a ambas, alegrias e desgostos, vieram os netos, a minha Mãe faleceu primeiro, juntando-se ao meu Pai que nos tinha deixado há muito, os Pais dela também partiram e nós por cá continuamos, rendidos às novas tecnologias e comunicando semanalmente por email, com uma velha amizade inquebrantável e também sem fronteiras.
Clementina Relvas