Nunca pensei que os "olhos do meu coração, no dizer de S. Paulo, revelassem pormenores por mim julgados completamente esquecidos...
Sexta-feira, 03.10.08

         
       Meus queridos Netos:

 

     Como vocês sabem, eu e a Vóvó fomos a Israel, à Palestina e à Jordânia, pelo que estivemos ausentes deste nosso querido país cerca de nove dias. A Vóvó certamente vos irá descrever, em cartas próximas, o que foi esta nossa maravilhosa excursão, as alegrias e as canseiras que tivemos e até as maçadorias que suportámos, impostas pelas medidas de segurança em vigor naqueles territórios.

 

     Mas resolvi fazer aqui uma breve intromissão para vos relatar um episódio curioso que me aconteceu, ainda no aeroporto de Lisboa. Quando nos preparávamos para fazer o check in, fui abordado por uma senhora, bastante mais nova do que eu mas já de cabelos brancos, de porte respeitável, que me lançou de chofre a seguinte pergunta: “o senhor não me reconhece?”. Fiquei surpreendido mas, ao mesmo tempo, vi naquela cara qualquer coisa que não me era completamente estranha. Perante a minha indecisão, a senhora acrescentou: “não se lembra de mim da Pedra do Feitiço? Sou a filha de Barros Martins, a Albertina!”

 

     A senhora era, nem mais nem menos, do que a menina de oito a dez anos que, com os pais dela, eu conheci e convivi, quando ainda era um jovem, na Pedra do Feitiço, (sobre esta localidade de Angola, releiam, mais atrás, as três cartas que vos escrevi com o título AVENTURA “IN RIO”). Nunca mais a tinha visto, nem a ela e nem aos pais, desde que deixei aquela recôndita e misteriosa terra. Como foi possível ela reconhecer-me cinquenta e tal anos depois? Há coisas que nos espantam quando menos esperamos! E ainda mais, pois a Albertina fazia parte do nosso grupo pelo que, durante nove dias, voltámos a estar sempre juntos, para grande satisfação minha e da Vóvó que muito simpatizou com ela.

 

     José Carlos Barros Martins, era técnico agrícola do Estado, que, com o seu Land Rover, esquadrinhou todo aquele vasto território, dando assistência da sua especialidade às populações autóctones e não só, muitas vezes acompanhado por mim que, embora sendo a autoridade da região, não dispus por largo tempo de transporte próprio, pelo que muito lhe fiquei a dever pelo contributo que me deu no conhecimento do território. Casado e com duas filhas, além da sua capacidade profissional era uma pessoa de grande honradez, respeitada e estimada por todos, negros e brancos. Já falecido, bem como sua esposa, aqui lhes presto, nesta singela cartinha, a minha sentida homenagem.

 

Beijinhos para ambos do vosso avô e aguardem as cartinhas da Vóvó! Até breve!

 

                      

                                                    A Vóvó em Petra (Jordânia)

publicado por clay às 23:36 | link do post | comentar | favorito
Quarta-feira, 03.09.08

Queridos netinhos: 

 

Hoje quem vos escreve é o Vôvô porque a Vóvó tem andado muito ocupada. E de que é que eu vos vou falar? Ora, nada mais do que da minha estreia em Angola, como funcionário público, para onde fui na simples qualidade de estagiário, depois de deixar por livre vontade o meu lugar no Instituto Nacional de Estatística, aqui em Lisboa, o mesmo que ainda hoje existe ali para os lados do Bairro do “Arco do Cego”.

 

 Ainda andava na casa dos vinte anos e não foi por ir ganhar mais que resolvi mudar de vida lá longe, na nossa antiga colónia de Angola. Lembro-me bem que a diferença de vencimentos era só de cerca de 250 escudos. Cá ganhava cerca de 1250 escudos por mês (o que não era nada mau para um rapaz da minha idade) e em Angola passei a ganhar 1500! Foi mais por simples aventura, conhecer outras terras, pois tinha passado toda a minha adolescência (cerca de 14 anos) em Timor, outra nossa ex-colónia.

 

Quando ainda era estudante, tinha lido um livro de Ferreira da Costa, escritor nesse tempo muito conhecido por escrever sobre África, com o título “Pedra do Feitiço”, que ainda hoje guardo com o máximo cuidado na minha biblioteca, protegido por uma encadernação com letras douradas na lombada. É uma sétima edição de 1945 em cujo prefácio o autor escreveu o seguinte trecho que passo a copiar:


“A Pedra do Feitiço existe. Fica distante de Santo António do Zaire, quase em frente de Boma. É um morro pedregoso, agreste e nu. Triste. Sinistro, por vezes. Assenta no limite de savanas bravias, onde as tsé-tsé instilam venenos letais, os carnívoros despedaçam corças e todos os brutos urram de ansiedades frenéticas, nos contactos da procriação. Para lá da colina rochosa, desliza o grande rio majestoso – o Zaire. O calor martiriza. Entontece. Leva ao desvario. Nem réstia de sombra, para lenitivo de tamanho tormento. Em torno não se vislumbram sinais de vida humana. Paira um silêncio trágico, primitivo, só atenuado, ao descer a noite, pelo resfolegar dos hipopótamos e os gritos estridentes dos abutres. Chega-nos o cheiro nauseabundo da carne podre – carcassas sanguinolentas, restos de festins nocturnos das panteras e dos chacais. Na margem, entre limos e juncos, brilha o olhar vítreo dos jacarés. É assim a Pedra do Feitiço.”


Acabados de chegar a Luanda idos de Lisboa, eu e mais dois colegas estagiários, apresentámo-nos no departamento estatal próprio, para sermos informados do nosso destino, algures no vasto território, catorze vezes maior do que Portugal. A expectativa não era grande pois sabíamos, como caloiros que éramos, que iríamos ser colocados em regiões pouco desejadas. Ao receber a minha Guia de Marcha, nem queria acreditar no que lia. Destino: Distrito do Zaire. Posto: Pedra do Feitiço. Manifestei um certo regozijo que os meus outros dois colegas não entenderam porque, embora estivessem tristes por as suas colocações não serem boas, como já esperavam, consideravam-se mesmo assim mais sortudos do que eu. "Eh! Pá, logo a Pedra do Feitiço, que azar!" De facto, Pedra do Feitiço tinha má fama, mas fiquei contente com a novidade. A leitura do livro de Ferreira da Costa nunca me saíra do pensamento e acalentei sempre o desejo de um dia repetir as aventuras nele narradas. Posso mesmo afirmar que este livro até teve forte influência no rumo que havia de dar à minha vida, trocando o cómodo e promissor lugar que tinha no INE pela incerteza dum cargo em África. E logo na Pedra do Feitiço. Que estranha coincidência! Que sorte!

 

Em Santo António do Zaire, conhecida também por Sazaire, terra pequena onde todos se conheciam, a minha chegada foi quase um acontecimento. Quem seria aquele jovem solteiro, com ares citadinos, que chegava ali e era logo “desterrado” para a Pedra do Feitiço? As pessoas receberam-me com simpatia mas dei conta de que, nos semblantes apresentados, embora risonhos, pairava certo ar de admiração e de comiseração. Fiquei cerca de um mês na Vila a adaptar-me, mas o que eu queria era seguir para a Pedra do Feitiço que era o meu destino oficial, como estagiário.

 

E como ir para lá?

 

Vieram então algumas sugestões: Uns diziam: “olhe o sr. Fonseca parece que parte amanhã para o mato com um carregamento de fuba para o pessoal e o senhor podia aproveitar a boleia. Se quiser eu vou falar com ele.” Outros: “Há os camiões dos madeireiros que trazem para as serrações grandes toros de madeira e voltam para as matas vazios, talvez fosse uma solução...” Até que alguém me falou no rio. No rio, mas como? Disseram-me então que no pequeno porto estavam, naquele momento, a carregar um gasolina com mercadorias destinadas, precisamente, a abastecer a loja do Sr. Francisco, na Pedra do Feitiço. Ora aí estava a resolução do meu problema.

 

O rio, como já adivinharam, era o grande Rio Zaire, um dos maiores rios navegáveis do mundo O seu estuário é tão vasto que da sua margem esquerda, onde ficava a Vila de Sazaire, mal se vislumbrava a outra, a direita, que pertencia ao Congo que, naquele tempo, era uma colónia belga.

 

Como queria seguir imediatamente ao meu destino, ansioso como estava de iniciar as minhas novas funções e, para mais, sedento de aventuras próprias da idade, fui logo procurar o tal Sr. Francisco. “Que não estava”, disseram-me. “O Sr. Francisco está na sua loja na Pedra do Feitiço desertinho que cheguem lá as mercadorias que estão a carregar no gasolina para vender na loja dele, no mato, mas se o senhor quer ir no barco dele, o senhor agora é quem manda, vai lá e é só dizer isso à tripulação” e acrescentaram, “porque o senhor, agora, é a autoridade máxima daquela região para onde vai. Acima de si está só o Sr. Intendente, aqui”. “E mais, quando entrar no gasolina passa a ser o comandante do barco”

 

Ao princípio fiquei um bocado confuso. Se esta conversa não tivesse sido na presença do chefe da alfândega, uma pessoa muito prestigiada na Vila, eu não teria acreditado. Autoridade máxima de uma região e para mais comandante de um barco? Ora esta!

 

Mas era verdade. E depois ainda me apareceu um funcionário, mais novo do que eu, que tinha sido colocado mais para o Norte, a pedir-me boleia que logo aceitei. Sempre era mais um companheiro de aventura. Chamava-se ele Neves. Com o calor que estava naquele momento, até achei graça ao nome do rapaz.

 

Lá fomos os dois até ao barco. Eram três os seus tripulantes. Três corpulentos negros, ainda novos, que logo se desbarretaram quando nos viram. Um deles, chamemos-lhe "o Imediato", já sabia de tudo, quem eu era e ao que ia. Naquelas paragens as notícias corriam céleres. Perfilou-se e disse-me: “Sr. Comandante, o gasolina está pronto a seguir”. E ficou-se por ali.

 

Olhei em volta. Era um barco de madeira, não teria mais de trinta metros de comprimento, pintado de branco, tendo ao centro uma pequena cobertura que depois descobri ter por baixo dela um motor a gasolina. Por isso estes barcos eram designados "gasolinas". E muita carga, com tanta carga que não se via o fundo do barco. Por baixo eram caixotes vários, sabe-se lá com quê. Por cima destes, sacos e mais sacos cheios de fuba, (farinha de mandioca, base muito importante da alimentação local) e outros mal cheirosos cheios de peixe seco, como vim depois a saber. E depois, é incrível, por cima disto tudo, ainda, soltos, enormes bidons metálicos, com capacidade para 200 litros. Eram os chamados tambores de 200 litros nos quais eram transportados para todo o lado combustíveis, como gasolina, gasóleo, etc. Mas estes, felizmente, iam vazios para retornarem depois cheios de óleo de palma dém-dém, quando o barco regressasse Tornei a olhar e vi que não havia sequer um lugar para nos sentarmos O "Imediato" continuava de pé, hirto, com os olhos muito brilhantes postos em mim., como quem está à espera de uma resposta. E estava! De repente lembrei-me de que, afinal, era eu o "comandante", caí em mim, e disse com a voz mais autoritária que consegui arranjar: Siga a viagem!

 

O "Imediato" pôs-se logo em acção, mas antes faz-me esta pergunta embaraçosa: “Sr. Comandante qual das rotas vai escolher?” Fiquei deveras encabulado, misto de vergonha e desconfiança. Estaria ele a gozar-me? Mas não. O homem era um daqueles angolanos de aspecto irrepreensível, falando um português sotaqueado mas muito perfeito. Logo naquele momento me inspirou confiança. Aliás, de qualquer forma, era com ele que eu tinha de contar, pois devia conhecer o rio como as suas mãos.

 

Depois de uma compreensível mas curta hesitação disse-lhe: “Rio acima pela rota que você sabe!” Ele mostrou um sorriso e disse-me: “Obrigado!” Pensei aliviado: “Temos homem!”

 

Como esta carta já vai longa, prometo-vos continuar numa próxima, porque vocês nem imaginam o que me havia de acontecer, mesmo antes de chegar ao meu destino: “a tenebrosa Pedra do Feitiço”.

 

Beijos.

 

Nota: As pessoas aqui mencionadas existiram de facto. Por motivos óbvios os nomes de alguns são fictícios.

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